"A morte que está quase viva, o renascer durante a noite, sem luz, sem ninguém por perto, em que posso tirar as linhas que me cobrem e abrir um pouco as janelas para deixar entrar o ar neste refúgio. Sou como um espelho que zomba com quem tenta entende-lo e reflectir-se nele, uma aberração em que tudo se distorce quanto mais tempo olhamos para ele, como se estivéssemos num estado de embriaguez e não conseguíssemos ver nada direito.
As paredes dançam nuas, contorcem-se e assumem formas à medida que coloco mais umas pedras nas muralhas deste castelo, dificultando o mais possível os acessos aos tesouros escondidos dentro dele, que teimam em espreitar pelas poucas frechas nos alicerces que permitem a entrada de claridade. Sou um prisioneiro, com algumas vontades fugazes de exposição e fuga, mas um prisioneiro portanto.
No meio do pó, das roupas usadas, dos adereços fora de moda, das dúvidas, das confianças, e dos subterfúgios dos outros, está esta lareira, que teima em não deixar as chamas ganharem força. Ela alimenta-se apenas do que vejo com os meus olhos, das memórias que retenho comigo, funcionando como uma entidade auto-suficiente.
Sacudo o meu casaco curto, cheirando o ar da manhã que se ergue através dos ossos deste esqueleto, sem que o peso do meu corpo se faça sentir em alguma ocasião. Estou tão leve, tão leve, que quase me vejo a flutuar por entre estes cinzentos, pretos e vermelhos, como se de um fantasma ou espírito irrequieto se tratasse. Demorei muito tempo até chegar a este estado de ascensão, muitos dias a planear até onde poderia ir sem desmaiar, sem que as forças me abandonassem, carregadas assim pela energia dos sonhos e das tentações. Estou a aprender a amar-me, e quando faço amor comigo sei que faço amor com o mundo.
Várias foram as vezes que senti escadas, elevadores e passos a tentarem escalar as barreiras, mas fugi sempre, nunca me revelando, escondendo-me dos olhares, tactos e vozes, pois ainda não estava pronto, qual mágico que prepara anos e anos o seu truque mor. Até lá não posso arriscar percorrer a corda deste trapézio porque me falta equilíbrio, estabilidade e segurança.
Se isto começa a parecer um circo é por uma boa razão, e se um dia se perguntarem onde é que estarei porque não me conseguem ver, essa será a altura ideal para me procurarem. Pode ser que nessa altura as portas das masmorras se abram e o meu coração possa ser visto a olho nu, mas até lá não peçam para não vos partir o vosso quando não consigo encontrar o meu sequer."
Nuno Almeida, Lugares Comuns, 2008
Boomp3.com
PS: Este texto foi escrito olhando para a espectacular ilustração realizada pela Liliana. Bom fim-de-semana para todos(as). :)
As paredes dançam nuas, contorcem-se e assumem formas à medida que coloco mais umas pedras nas muralhas deste castelo, dificultando o mais possível os acessos aos tesouros escondidos dentro dele, que teimam em espreitar pelas poucas frechas nos alicerces que permitem a entrada de claridade. Sou um prisioneiro, com algumas vontades fugazes de exposição e fuga, mas um prisioneiro portanto.
No meio do pó, das roupas usadas, dos adereços fora de moda, das dúvidas, das confianças, e dos subterfúgios dos outros, está esta lareira, que teima em não deixar as chamas ganharem força. Ela alimenta-se apenas do que vejo com os meus olhos, das memórias que retenho comigo, funcionando como uma entidade auto-suficiente.
Sacudo o meu casaco curto, cheirando o ar da manhã que se ergue através dos ossos deste esqueleto, sem que o peso do meu corpo se faça sentir em alguma ocasião. Estou tão leve, tão leve, que quase me vejo a flutuar por entre estes cinzentos, pretos e vermelhos, como se de um fantasma ou espírito irrequieto se tratasse. Demorei muito tempo até chegar a este estado de ascensão, muitos dias a planear até onde poderia ir sem desmaiar, sem que as forças me abandonassem, carregadas assim pela energia dos sonhos e das tentações. Estou a aprender a amar-me, e quando faço amor comigo sei que faço amor com o mundo.
Várias foram as vezes que senti escadas, elevadores e passos a tentarem escalar as barreiras, mas fugi sempre, nunca me revelando, escondendo-me dos olhares, tactos e vozes, pois ainda não estava pronto, qual mágico que prepara anos e anos o seu truque mor. Até lá não posso arriscar percorrer a corda deste trapézio porque me falta equilíbrio, estabilidade e segurança.
Se isto começa a parecer um circo é por uma boa razão, e se um dia se perguntarem onde é que estarei porque não me conseguem ver, essa será a altura ideal para me procurarem. Pode ser que nessa altura as portas das masmorras se abram e o meu coração possa ser visto a olho nu, mas até lá não peçam para não vos partir o vosso quando não consigo encontrar o meu sequer."
Nuno Almeida, Lugares Comuns, 2008
Boomp3.com
PS: Este texto foi escrito olhando para a espectacular ilustração realizada pela Liliana. Bom fim-de-semana para todos(as). :)
29 comentar
Click here for comentarO teu castelo, será sempre o teu castelo.
ReplyBonito texto. :)
Gostei mesmo muito e talvez por isso que não consiga falar muito sobre ele. Mas está bonito.. :)
** **
Obrigada, mais uma vez. :)
ReplyE muita bonita está a tua ilustração, quase que me hipnotizando o_0
:)
Não deixa de ser um paradoxo, o sentimento de se ser prisioneiro mas ao mesmo tempo o de fuga. Um texto muito curioso. :)
Reply:)
ReplyAcho que 'nós' enquanto seres humanos somos um paradoxo constante heheh.
Este texto é mais um daqueles meio weirds, que te sai assim na hora e ficas a matutar nele, não só porque acaba por ter partes de ti nele como quase sempre, mas depois devido ao resto. :)
Ao menos por enquanto o meu receio dos bloqueios passou um pouco, já que a inspiração manteve-se pós mini férias, se bem que sinto uma vontade de mudança, de fazer outras coisas.
Até já me veio à cabeça coisas comos os contos eróticos da Anais Nin e do Henry Miller. :p
Se continuares a escrever assim, mas com uma componente erótica só pode sair algo interessante. :)
ReplyNão te preocupes com bloqueios. Deixa-te ir, simplesmente. :)
Sem o paradoxo não seria nada, mas para falar a verdade, detesto-o! :-p
heheh thx, vamos lá ver se sai ou não. Olhando para alguns dos textos por aqui, que até já têm o seu quê de erotismo, penso ser um passo meio lógico, de experimentar o que sai dali.
ReplyMas ya, o melhor é uma pessoa deixar-se ir, mesmo com esses desejos por mudança. Isto deve ser a tal fase, e ontem à noite ao brincar com ums ideias a nível de música também saiu algo um tanto diferente do habitual. o_0
Também detesto o paradoxo (nada como a simplicidade em certos aspectos), apesar de me fascinar ao mesmo tempo. É uma relação de amor/ódio muito particular. :p
Quando sentimos que algo está a mudar em 'nós', temos sempre a tendência para dar um passo atrás, por muito que a tua vontade seja de mudança. Lá está aqui o dito 'paradoxo'. Malvado! hehe
ReplySair fora do habitual não tem que ser uma coisa necessariamente má. Os nossos hábitos transformam-se. :)
Ora venham daí esses contos!
Ai isso do tentarmos dar um passo atrás é tão verdade god... Ao mesmo tempo que sentes que podes estar a dar um passo em frente, sentes que não queres perder os do passado, as inspirações, as coisas que fizeste, e começas a lutar para tentar encontrar um equilíbrio. Por vezes apetece-me bater-me ahahah. :p
ReplyNo caso das ideias ontem de noite, realmente sinto que o fora do habitual não foi mau, pelo contrário, pelo menos em termos pessoais.
Se conseguir seguir aquela ideia que tive, poderá servir como novo CD de apresentação por exemplo, mas ao mesmo tempo tenho plena consciencia que irá ajudar ainda menos a nossa causa de nos deixarem fazer noites tendo em conta como as coisas geralmente funcionam nesse meio. E viva o paradoxo mais uma vez. :p
Mas lá está, sabes quando sentes que o que estás a fazer é um passo evolutivo natural? É basicamente isso e acho que vou mesmo tentar ver onde me irá levar, o que se aplica à tal ideia dos contos que tem estado na minha cabeça também.
Curiosidade, na altura quem me deu um livro de contos desse género da Anais Nin foi a minha professora de psicologia. o_0
:)
Reply;)
Replyhaha grande prof!
ReplyDepois quero ouvir esse cd. :D
Heheh, ya, ela é daqueles casos que tenho imensa pena que tenhamos perdido o contacto com o passar dos anos. :(
ReplyO tal CD deverá ser o novo da minha faceta mais electrónica, not sure se irás gostar, mas é sempre uma curiosidade. Por agora gosto do tal começo que fiz naquela noite, 13 minutos assim meio abstractos. ;)
Se bem que um outro tem estado parado há MUITO na minha cabeça, que segue a vertente entre os mais introspectivos e outros mais mexidos, estilo noites no BB, e onde devrão figurar coisas como os Genaro por exemplo. ;)
Quem sabe esteja a matutar realmente no que fazer com ambas as vertentes, em criar algo para dar a sítios que lá calhe. Na volta é apenas vício, mas ya..:p
E ainda falta a nova versão da 'radio' aqui para o blog. God...haja neurónios para tudo.
13 min de música abstrata? Quem disse que não ia gostar, por ser electrónico? Oiço de tudo. ;)
ReplyGenaro.. Genaro... Adoro isso. Acho que foi uma das poucas bandas que oivi nos últimos tempos e fiquei fã. :D
Põe lá esses neurónios a funceminar. :)
No fundo não os acho abstractos, e algumas opiniões até os consideraram dançáveis lol.
ReplyMas remetendo-os para os contextos 'normais' das noites, do que vais vendo e ouvindo, do que costumam dar às casas em termos de CDs e tal, acabam por ser um pouco, porque não têm aquela imediatez do 'tum tum tum' mal começam, e pautam sempre por uma especie de ambiente do início ao fim. E este é provável que ainda vá mais longe, apesar de também incluir o 'tum tum tum' algures. :p
Se muitas das casas, e nestas coisas das noites, não querem saber da música, o que metes ou usas, mas sim quem é que tu conheces ou não, chega a um ponto que acabas por seguir ainda mais as tuas linhas muito próprias. Por um lado isso é fixe para criares uma identidade própria i guess. :)
O problema foi ter gostado mesmo da ideia inicial, senti-la 'diferente' e sentir agora que será dificil manter o nível no resto do CD. :p
Já o que poderá incluír os Genaro, deverá ser bem mais acessível. :D
MAis, BIS!!!
Reply:)
O castelo faz-me lembrar o estranho mundo de jack!!
ADOREI!
Thx. :)
ReplyE posso adiantar que uma nova 'brincadeira' está em curso. ;)
Nice!!!
ReplyFico á espera para ver o resultado dessa brincadeira! :)
This one is a special one ;)
ReplyTorna-se belo conseguir identificar as palavras que te deram a ideia do parágrafo seguinte.
Parece uma dança de ideias, Gostei Muito ;)
§
thx, e yep, é mesmo. ;)
ReplyQuem sabe seja uma espécie de luta e dança (usando a tua descrição), entre várias das personalidades que formam o castelo deste texto. :)
Ainda foram algumas as vezes que senti que me ia perder no meio destas palavras, tal o caos que existia na minha cabeça na altura em que as escrevi.
Não sei se acontece cntg, mas para mim quando escrevo dá quase sempre para pôr em ordem (ou dar algum sentido) ao caos do que vou pensando. Quando acabo o sentimento é quase sempre de mais calma e clareza, onde antes era dúvida ou emaranhado labirintico de feelings.
Reply§
:)
§
No que me toca não sei bem, porque tem sempre aquela coisa do momento e de ter sempre demasiada coisa ao mesmo tempo na cabeça, e quando acabo de escrever algo, em muitos casos dá-me é para ficar perturbado ao olhar para o resultado final, à mistura com uma sensação de leveza por teres conseguido criar algo e ter aproveitado mais um momento.
ReplyEm si parece-me que vai dando para fazer sentido nos textos algumas partes, especialmente se o final conseguir dar algum tipo de resolução, mas nem sei. É caótico, começas a escrever e sinto os olhos a brilhar e a mente a disparar para mil direcções ao mesmo tempo.
mas realmente, quando acontecem os tais finais, dá-se essa clareza que falas aqui dentro, à mistura com o tal sentimento de perturbação. :)
Acho que esse sentimento que falas é apenas o de estar vivo!
ReplyIsto não pode ser uma eterna paz, seria chato de morte.
A calma que falo não se prende directamente com resolver ou não positivamente o txt. na volta é apenas um conforto por me ter obrigado a verbalizar ideias.
Mesmo que o resultado ou o final seja terrível, eu fico quase sempre mais leve... catarse?!
§
Olha, catarse é uma boa palavra para descrever a sensação sim. :)
ReplyÁs vezes tenho pena (ou será inveja?) de não me conseguir conseguir 'espremer' assim.
ReplySe eu fosse uma laranja e se eu tivesse um espremedor gigante, talvez me conseguísse espremer e muito do que era eu, saía cá para fora. Assim como tu fazes.
É certo que tu não és uma laranja, nem um limão, mas aos poucos vais caindo a conta gotas para dentro de um copo, e há-de sempre haver alguém que pára, para te beber.
Resta saber se por ter sede, ou se por simplesmente estares 'aqui', de 'oferta'.
Qualquer que seja a resposta, deve ser sempre uma aventura, porque afinal nunca sabes quem te vai segurar, quem te vai provar e que reacções vais receber acerca disso.
Eu não tenho essa coragem.
Mas gostava. :)
Não só a tua, como a de muitos que vou lendo, que se escrevem assim, letra por letra, e ficam 'aqui'.
Não mete medo?.. eu acho que me faltava o ar. :)
E depois eu leio, releio... fecho a página, volto a entrar, leio mais um bocado, saio... passeio-me pela net, volto.. e das milhentas frases que vão ganhando cores e formas na minha cabeça, não me sai uma única palavra.
Acho que é por isso que não comento muitas das coisas que vou lendo por aqui e noutros sítios.
Mas provo. E quando gosto vou voltando.
Este é como a água.
Vai-me saciando aos bocadinhos, de cada vez que aqui paro para o ler..
Bem, já não digo coisa com coisa.
Acho que só disse parvoíces.. sorry.. acho que é do sono.
Vou mas é dormir.
**
Para quem diz que não se consegue espremer e afins, acaba por ser meio irónico que o faças na maior parte das ilustrações que fazes, textos incluídos, e bem. ;)
ReplyComo tal, também existe quem beba as tuas gotas. :p
Desde o meu retorno à escrita e evolução noutros campos, algumas coisas têm mudado por aqui, especialmente neste blog. Até nos CDs que faço ou versões da 'radio', há aqui mesmo algo dessa tal oferta, de me dar às pessoas, e dar algo a elas também. Gosto de lhes dar algo i guess. :)
Ao mesmo tempo, apesar de cliché, a idade vai-te fazendo assumir como és e a não te importares muito com o que possam vir a achar de ti perante o que mostras.
E como eu, outras pessoas existem assim, e estão assim, e por vezes nem comento muito nos blogs delas também porque ou prefiro guardar para mim as palavras, ou porque simplesmente nem dá para comentar sequer o que vejo e leio tal seu o impacto.
Ainda bem que vais provando, e gostando. :)
No que toca a este texto e ilustração, algo um pouco 'diferente' paira por aqui, restando saber o que virá depois disto.
Sim, mas nas ilustrações, pelo menos nas minhas, o tipo de espremedor é diferente.
ReplyAs gotas vão caindo, mas como têm cor, muitas vezes as pessoas perdem-se mais nesse pequeno pormenor, do que realmente na essência do todo e no fim, todos têm liberdade para ler o que quiserem, porque raramente digo o que me passava pela cabeça quando as estava a fazer. Acaba por ser uma posição muito mais 'confortável'.
Agora na escrita, quando é feita sem muitas reservas, ainda que depois cada pessoa não consiga adivinhar exactamente o que ia na cabeça do escritor, muitas das coisas que são ditas dá para entender.
Nem sempre é preto no branco, muitas vezes é mais preto no cinzento e a percentagem de cinza varia consoante a vontade de quem escreve, de modo a que consiga ser mais ou menos perceptível o que ele(a) quer transmitir.
E sim, claro que esse à vontade, nem sempre, mas muitas vezes também tem a ver com a idade... o que dito assim, me faz sentir deveras 'infantilóide'.. :p
Conclusão: Admiração. :)
**
Pode ser diferente, mas é um espremedor na mesma. :p
ReplyAcabam por ser duas formas de exposição diferentes, mas ambas são a maneira que as pessoas encontram de mostrar um seu 'eu' e um pouco da sua essencia.
Talvez na escrita pareça que as coisas são mais claras, mas no fundo nunca são, conseguindo até confundir ainda mais as pessoas em certos casos quanto à pessoa que os escreveu.
Thx mais uma vez *blushes*, apesar de não me achar digno de admiração heheh. :p
Apesar de estar "fora de contexto" .... gostei tanto mais do vossa troca de ideias, que o contexto do texto. Como as palavras soltam as energias e fazem comunicar.
ReplyMuito boa a vossa partilha
Thx. ^_^
ReplyIsto dos blogs é deveras curioso e engraçado, como facilita a troca de ideias e energias com uma certa facilidade, de pessoas que antes nem se conheciam. Acho que tem algo de libertador. :)
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