Teatro

"A última vez que te vi foi num palco. Vestias várias personagens, os olhos brilhavam-te e os teus cabelos pintavam-se de várias cores, contando histórias a cada ondular e pequeno movimento.


Como mero observador limitava-me a sorrir, tentando descortinar a bênção de podermos apreciar um pouco da tua essência, do que te faz ferver o sangue e seguir em frente, sem concessões nem manias, caminhando numa estrada de sonhos e feitiços.

Contavas situações mirabolantes e quotidianas, daquelas que vivemos todos os dias mas que optamos por as ignorar, seja por ser mais fácil assim, ou porque simplesmente temos sempre mais com que nos preocupar. Naquele momento, tu parecias mesmo que te preocupavas e fazias o público acreditar que se preocupava também, numa convergência mágica e ilusória que nos faz sentir, naquele período de tempo, que somos mais do que realmente somos, e que o impossível é possível, bastando esticarmos a mão em direcção ao infinito para tal acontecer.

Quando as luzes se acendem tudo se apaga e desvanece, como uma cortina de fumo que se levanta e desaparece em segundos. Tu continuas lá, mas já não és a mesma pessoa, pelo menos diante destes olhos, não sabendo o que pensar de toda esta situação, se devo amar a pessoa, a personagem ou o actor e actriz que tenho diante de mim.

Depois das palmas e um último sorriso, decido voltar costas sem olhar para trás, sem pensar que poderá estar ali alguma história por resolver ou algum passado quebrado, num manifesto a favor do agora e do momento. Recordo a tua timidez perante a exposição súbita que o agradecimento ao público implica, quando nos despimos das nossas personagens e, por momentos, vi ali aquilo que sempre acreditei que existia, o teu eu essencial. Em forma de retribuição ofereci-te o buraco negro destes olhos grandes, sérios e alucinados, desfazendo-me num sorriso, também ele tímido.

Enquanto caminho de volta a casa sinto uma estranha felicidade, esboçando um *obrigado* interior, silencioso, sem voz, à medida que ganho consciência que o mais certo é nunca mais nos vermos, pelo menos daquela maneira, o que me faz abraçar esta noite como se não houvesse amanhã, num jogo de lençóis sensual e trepidante.

A minha vontade é telefonar-te e dizer para encenarmos outra peça, para partilharmos outro palco, mas já partiste há muito, transformada numa lápide deste cemitério de personagens que habita o meu ser, sem dar oportunidade de me despedir e dizer um último adeus. Mas não fico triste, nem me posso permitir a tal, porque amanhã seremos outros, cruzando-se de maneira incorpórea nesta estrada de sensações."

Nuno Almeida, Lugares Comuns, 2008

Boomp3.com

PS: Neste novo 'trabalho' em conjunto com a Liliana, o convite partiu desta vez da minha parte, de fazermos algo a partir de um texto e de uma música. O resultado final ficou mais uma vez deveras curioso, sendo que tudo começou quando os Black Swan Lane fizeram upload no myspace da faixa que encontram neste post, com o todo acabando por ser uma junção particular de áreas diferentes e da criatividade de todos os elementos. Espero que gostem como nós adorámos faze-lo. :)

9 comentar

Click here for comentar
Anónimo
admin
22 agosto, 2008 20:51 ×

Tudo muito bom. Muito bom mesmo mas cheguei ao fim do texto e as maminhas da boneca ainda não tinham crescido. E nem ela tinha calçou ainda uns sapatinhos agulha…

:)

Reply
avatar
Anónimo
admin
22 agosto, 2008 20:52 ×

Raios eu queria dizer calçado!
CALÇADO!!!

Reply
avatar
Sofia
admin
23 agosto, 2008 03:57 ×

Alô,
Gostei muito, muito mesmo, deste txt.
Descreve duma maneira bela um daqueles momentos especiais de encantamento que todos temos de vez em quando; e que no meu modo de o entender tanto se pode ter passado num palco como noutro espaço qualquer porque afinal "All the world's a stage,
and all the men and women merely players..."
Mesmo quando quebras o encantamento com 'o acender das luzes' ainda fica o extraordinário momento de entendimento com os 'sorrisos tímidos'.

Daí para a frente e até ao final do txt deixas-me a pensar em muitas coisas, sobretudo na rapidez do modo de vida dos dias de hoje e na brevidade com que quase tudo se descarta. há uma pergunta que não não resisto a deixar no ar: 'e se o teu sujeito tivesse chegado a telefonar em vez de a ter reduzido a "uma lápide deste cemitério de personagens que habita o meu ser"?'

What if?

A terrível pergunta do desassosego!

Extremamente sedutora a banda sonora escolhida ;)

Desta vez a crítica construtiva vai para o blog da Liliana.
§

Reply
avatar
23 agosto, 2008 16:21 ×

Ahahah , só tu (industrialsonic). :p Thx . :)

Sofia, obrigada mais uma vez. ^_^
A questão do telefonema pode ser realmente um daqueles 'ses' com que ficamos por vezes, em que ponderamos em algumas decisões que tivemos na vida.

Cada vez que releio este texto não sei bem se pessoa da peça existe mesmo ou se afinal é uma personagem que o narrador criou para si na sua cabeça. É um pouco marado olhar para as coisas depois de sair daquele estado após as escrever, e olhar para elas com outros olhos.

Reply
avatar
24 agosto, 2008 17:36 ×

:) Pois, este texto... eu não sei se vale a pena falar do que senti ao lê-lo porque a explicação está na ilustração que já viste. :)

Li-o e reli-o várias vezes.

Como já havia comentado contigo, a mesma dúvida que sentes em relação à pessoa da peça, eu também a senti, mas não da mesma forma que tu, já que para mim a pessoa da peça sempre existiu.

No entanto a forma como o narrador a visualizava na sua cabeça e o modo como ele a preferia recriar diante de si, foi o que me fez questionar muita coisa.. :)

Gostei muito muito deste texto! :)

E folgo em saber que ainda vais confiando em mim, para transformar livremente em formas e cores, aquilo que sinto com certas coisas que escreves.

Parabéns Nuno! :)

**

Reply
avatar
24 agosto, 2008 18:20 ×

Erm, tu é que fizeste anos e eu é que recebo parabéns? :p

Voltando ao texto, essa questão que mencionas do narrador poder estar a criar uma imagem muito sua de alguém que viu e existe mesmo, também é uma das imagens que me ficou na cabeça após reler o texto.

Thx, e não tens de quê, isto são coisas muito mútuas. Só tenho de agradecer também a ilustração mais uma vez. :)

Reply
avatar
elsafer
admin
23 dezembro, 2010 12:55 ×

hoje vim aqui parar , sonhando com as palavras e com a vida .
uma boa companhia , as tuas palavras , os desenhos de Liliana e os sentidos que o som completa .

:-)

Reply
avatar
23 dezembro, 2010 13:15 ×

Obrigado. :)

Quem sabe algum post recente relacionado com este. :)

Dou por mim a revisitar uns quantos com a opção existente dentro de cada um, que vai buscar agora, aleatoriamente, quatro exemplos relacionados. :)

É bom olhar para estes textos e colaborações de tempos idos, alguma pena que já não existam, mas não deixa de ser bom olhar para o que se fez na mesma. :)

Reply
avatar