"São sete da manhã e acordo com os primeiros raios de sol, perdida de sono, com andar cambaleante em direcção à casa de banho como faço sempre. Entre o lavar os dentes e o comportamento compulsivo de procurar todos os dias eventuais caroços ou nódulos debaixo dos braços, pescoço e peito, dou por mim com as dúvidas da praxe enquanto olho para o espelho sem estar a olhar realmente para algum lugar.
“Será que hoje visto o 34? Ou será que opto pelo 36 com enchumaços?”
A dúvida entre o conforto e os rituais inconscientes de acasalamento são sempre muitas, sem nunca fazerem sentido, tendo em conta que na maior parte dos casos as minhas mamas são vistas apenas como adereços, algo que assinala a minha condição de gaja, mas que na hora nem se dão ao trabalho de tocarem nelas sequer. Puta que os pariu.
Abro o armário, tiro de lá mais uns comprimidos dos quais já nem recordo o nome tal o hábito, copito de água para empurrar e pondero que daqui a uns dias tenho de ir à médica para me passar nova receita já que esta embalagem está no fim. Tenho problemas em lidar com o stress dizem-me, mas eu sei bem que tenho problemas em lidar é com a vida.
Já perfeitamente desperta, dou uns passos pela casa, verificando se os efeitos secundários não são evidentes. Estou mais calma e só me apetece sorrir feita parva, dizer bom dia a toda a gente, sem vergonha nem hesitações. Neste momento estou feliz…, não comigo própria, mas estou feliz.
Todos os dias é a mesma coisa quando chega a hora de me vestir. Por muito prática que seja temos sempre algo que tenta agradar a alguém que não nós antes de passarmos a porta da rua.
Opto pelo 34 e por um vestido leve, comprido, que desliza de maneira solta pelo meu corpo, não evidenciando as formas, convidando antes ao mistério, misturado com algo de falsa inocência, quase que convidando a uma espreitadela perversa. Era isso ou ir pela provocação directa, pelo desejo de me atirarem para cima da fotocopiadora enquanto ela trabalha durante as pausas de almoço no emprego.
Consoante seja dia de semana ou véspera de fim de semana, as horas passam de maneira diferente, apesar de sentir que estou parada na vida há muito tempo. Nada que uns comprimidos não resolvam, que uma queca de ocasião não cure, ou uma ida ao cinema só porque sim, mesmo que a companhia sejam apenas eu e os meus botões. Antes só que mal acompanhada.
Tenho ataques de choro crónicos, acordo a meio das noites, mas sou popular, todos me conhecem, sou a pessoa com que podem contar, mas apenas para algumas ocasiões, especialmente se elas envolverem cama, lutas debaixo dos lençóis, prédios em obras, e vãos de escadas porque não.
A última noite deixou-me mais algumas marcas, especialmente na zona da coxa, mas soube bem, romperem-me as roupas assim com violência, empurrarem-me contra a parede e martelarem sem piedade o meu corpo frágil e inerte. Já que não existe ligação sentimental, ao menos que façam as coisas como deve ser, sem rodeios, falinhas mansas, e me tratem como mereço, afinal de contas também tenho direito ao prazer.
Tomo um banho, encosto a cabeça para trás, água a escorrer-me suavemente pelo corpo. Passo as mãos pelo meu peito, já que eles não o fazem, e solto um pequeno suspiro, observando os vapores da água quente que embaciam os espelhos.
Preparo-me para mais um dia, e noite, e pondero que posso ter problemas em lidar com o stress, mas sou feliz…, muito feliz."
Nuno Almeida, Lugares Comuns
2008, Textos Soltos
boomp3.com
“Será que hoje visto o 34? Ou será que opto pelo 36 com enchumaços?”
A dúvida entre o conforto e os rituais inconscientes de acasalamento são sempre muitas, sem nunca fazerem sentido, tendo em conta que na maior parte dos casos as minhas mamas são vistas apenas como adereços, algo que assinala a minha condição de gaja, mas que na hora nem se dão ao trabalho de tocarem nelas sequer. Puta que os pariu.
Abro o armário, tiro de lá mais uns comprimidos dos quais já nem recordo o nome tal o hábito, copito de água para empurrar e pondero que daqui a uns dias tenho de ir à médica para me passar nova receita já que esta embalagem está no fim. Tenho problemas em lidar com o stress dizem-me, mas eu sei bem que tenho problemas em lidar é com a vida.
Já perfeitamente desperta, dou uns passos pela casa, verificando se os efeitos secundários não são evidentes. Estou mais calma e só me apetece sorrir feita parva, dizer bom dia a toda a gente, sem vergonha nem hesitações. Neste momento estou feliz…, não comigo própria, mas estou feliz.
Todos os dias é a mesma coisa quando chega a hora de me vestir. Por muito prática que seja temos sempre algo que tenta agradar a alguém que não nós antes de passarmos a porta da rua.
Opto pelo 34 e por um vestido leve, comprido, que desliza de maneira solta pelo meu corpo, não evidenciando as formas, convidando antes ao mistério, misturado com algo de falsa inocência, quase que convidando a uma espreitadela perversa. Era isso ou ir pela provocação directa, pelo desejo de me atirarem para cima da fotocopiadora enquanto ela trabalha durante as pausas de almoço no emprego.
Consoante seja dia de semana ou véspera de fim de semana, as horas passam de maneira diferente, apesar de sentir que estou parada na vida há muito tempo. Nada que uns comprimidos não resolvam, que uma queca de ocasião não cure, ou uma ida ao cinema só porque sim, mesmo que a companhia sejam apenas eu e os meus botões. Antes só que mal acompanhada.
Tenho ataques de choro crónicos, acordo a meio das noites, mas sou popular, todos me conhecem, sou a pessoa com que podem contar, mas apenas para algumas ocasiões, especialmente se elas envolverem cama, lutas debaixo dos lençóis, prédios em obras, e vãos de escadas porque não.
A última noite deixou-me mais algumas marcas, especialmente na zona da coxa, mas soube bem, romperem-me as roupas assim com violência, empurrarem-me contra a parede e martelarem sem piedade o meu corpo frágil e inerte. Já que não existe ligação sentimental, ao menos que façam as coisas como deve ser, sem rodeios, falinhas mansas, e me tratem como mereço, afinal de contas também tenho direito ao prazer.
Tomo um banho, encosto a cabeça para trás, água a escorrer-me suavemente pelo corpo. Passo as mãos pelo meu peito, já que eles não o fazem, e solto um pequeno suspiro, observando os vapores da água quente que embaciam os espelhos.
Preparo-me para mais um dia, e noite, e pondero que posso ter problemas em lidar com o stress, mas sou feliz…, muito feliz."
Nuno Almeida, Lugares Comuns
2008, Textos Soltos
boomp3.com
14 comentar
Click here for comentarEste teu texto está... está... ahahahahah! Está demais! :) :)
ReplyBeeeeemmm.. Directo. Bem directo. Diria até antes realista. :)
“Será que hoje visto o 34? Ou será que opto pelo 36 com enchumaços?”
'empurrarem-me contra a parede e martelarem sem piedade'..
Eheh.. este texto está cheio de coisas tão banais e reais, que se torna chocante por isso. :p
Muito bem!
Sem contar que te consegues pôr no lugar de 'gaja', parece mesmo que era uma mulher a escrever.
Bom! muito bom! Gostei muito! :)
**
:p thx. :)
ReplyBem, se há quem pense que sou uma gaja/rapariga por vezes, ao menos que tire proveito da fama ahahah. ;)
Vinha no comboio, a pensar neste novo texto, ainda dormente. Isto parece que quase se sente a raiva e frustração da pessoa do texto, à medida que solta todos estes pensamentos.
Acaba por ser uma "realidade" incómoda para não variar.
E com isto pondero novamente em voltar a participar em recitais, já que esta fase parece propícia a isso e eu vejo-me a ler estes textos depois de os escrever.
Veremos...:)
Bem... Humm, conteúdo impróprio para crianxitas!!
ReplyWowwww, e pensar que há quem realmente viva, ou melhor, há quem se arraste pela vida... :s
ahahahah, ai as crianxitas, aiai. :p
ReplyEu até ponderei numa parte ou outra se deixava ficar certas frases como ficaram, mas depois deixei porque foi a raiva da personagem na altura, a maneira dela exprimir-se. ;)
E acho que fizeste bem.
ReplyGostei da frase:"Opto pelo 34 e por um vestido leve, comprido, que desliza de maneira solta pelo meu corpo, não evidenciando as formas, convidando antes ao mistério, misturado com algo de falsa inocência, quase que convidando a uma espreitadela perversa."
Eu, muito sinceramente sempre achei que os homens ficam muito mais curiosos face a uma mulher que não se evidencia tanto... :)
Thx. ^_^
ReplyDepende muito dos homens como tudo, porque há quem goste da onda mais explicita digamos.
E olha, como já comentei com a Liliana, agarrem-me, que isto hoje a corrosão está em alta ahahah. Tenho aqui outra cena na cabeça relacionada com pessoas que querem parecer mais velhas que o que são, que aiai, uma pessoa até fica com medo com o que possa sair daqui. :p
Sim, ao menos tira proveito disso! E ainda por cima sabes fazê-lo tão bem! :)
ReplyQuanto aos recitais, porque não?:)
Se sentes que estás para aí virado, 'deixa-te levar'. :)
E venha daí essa corrosão... ela que nos corroa a todos nem que seja por breves instantes.. Depois é só acompanhar a tua 'mood' e deixarmo-nos ir também para onde nos quiseres levar.. :)
**
danke. ;)
ReplyOs recitais, e regresso eventual aos mesmos, é algo que já tem estado na cabeça há algum tempo, mas só agora parece estar a fazer cada vez mais sentido. Mas como sou um pouco esquisito em relação aos sítios, onde participar ou onde fazer, veremos.
E a corrosão está mesmo em alta, o que me agrada, desde que consiga manter um certo equilíbrio com o resto heheh. :)
deixemo-nos ir então. ;)
Ninguém te vai agarrar Azel, nós somos a favor da criatividade!!!
ReplyExterioriza o que te vai no pensamento!
Go Azel, Go azel, go go go Azel (Grito de claque!!!)
:)
heheh :P
ReplyHoje acho que a corrosão está um nadinha mais calma, e até tenho coisas bonitas na cabeça *gasp*. ;)
Este texto está muito bom. Sem dúvida uma visão psicótica e auto-destrutiva de muitas miudas que andam por aí. Há quem ande tão ocupado em não querer sentir nada que o mínimo sentimento que tenha é avassalador, no mau sentido. Mas mesmo que não se queira sentir, é algo que faz muita falta. Perder o auto-controlo, é um dos meus terrores.
ReplyEste texto é fruto de alguma observação?
obrigada. :)
ReplyEste texto, apesar de ter saído assim na hora, acho que é fruto de muitas observações. Umas sentidas na pele, outras vislumbradas no dia a dia, e outras sentidas por outras pessoas, o que acabou comigo a encarnar uma personagem que é definitivamente psicótica e autodestrutiva como referes.
Quando acabei de escrever isto apanhei depois o comboio e vinha como que a tremer no caminho, porque parecia que ainda estava na pele dela e sentia assim uma espécie de raiva e fúria, em que quase ves a pessoa do outro lado do texto a soltar estas palavras. Meio perturbador.
Há muitas pessoas perdidas por "aqui", e ainda ontem deu para ver bem isso na noite efectuada no BB, mas isso fica para outro post talvez, porque nem sei se irei focar-me muito nisso quando falar da noite. :)
Muito bem observado, deixa-me que te diga :)
Replythx. :)
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