Os meus dias não são iguais aos teus

"Mistérios, fascínios, divagações, dou por mim a observar pormenores neste dia a que geralmente não ligo ou não estou particularmente atento.

Os dedos das mãos finos, a maneira como a farinha os pinta de branco consoante corto um pão de fabrico caseiro, a maneira como a mesma flutua e assenta depois de a soprar de cima de mim. A beleza e o bizarro estão onde os quisermos ver, ou quando paramos para os vermos.

Quantas vezes é que nem ouvimos sequer o barulho dos pássaros na rua? No meio do nosso stress diário, da loucura e azáfama das nossas rotinas e hábitos, entre o barulho ensurdecedor do transito, de um qualquer transporte público, e a alienação permitida pelas nossas tecnologias de ponta, vulgo leitores mp3 portáteis.

Raios, se alguém morrer ao nosso lado na rua o mais certo é pensarmos como isso irá afectar o que iríamos fazer nesse dia, que seria igual aos outros dias, que poderia tanto ser o jantar que temos para fazer como o episódio de uma série qualquer que dá a horas específicas num canal por cabo que não justifica o que pagamos pelo serviço mas a que nos habituámos só porque sim. Ele existe, logo também nós.

Nestas alturas dou por mim de olhos fechados. Acordado, mas de olhos fechados. Mais um ser alienado, igual a todos os outros. Quando os abro começo a ver novamente o que me estava a escapar.

A maneira como o vento afecta o cabelo de determinadas pessoas, os conjuntos de roupas das mesmas, as rachas que cada prédio apresenta nas paredes e pinturas, onde nalguns é um sinal da idade e noutros apenas um desleixo por parte dos empreiteiros e empresários para pouparem mais uns tostões. Até os azulejos da casa de banho me parecem diferentes quando regresso hoje a casa, os desenhos que eles formam, as texturas, a maneira como a água desliza neles após um banho, cada gota que se forma e que se desfaz com um pequeno sopro da minha parte. É tão giro ser tirano nestes impulsos, controlar o que vive e morre nesta democracia limitada, em que uma voz me diz para deixar viver as gotas, e outra me impele para as desfazer. É tão bom saber que alguma decisão fica a meu cargo depois de tanto tempo sob o controlo de outros e dos dias que nos corroem por dentro a pouco e pouco e nunca de uma vez.

Se me deitar de lado, as rugas que provoco no lençol são diferentes de quando me deito de barriga. Se mexer os braços de certa maneira, os pelos dos mesmos arrepiam-se, formam movimentos e parecem independentes de mim. Se olhar para cima enquanto deixo a luz acesa posso ver as sombras formadas pelo candeeiro. Argh, tanta coisa para ver, observar, e tão pouco tempo, paciência e vontade na maior parte dos casos.

Faltam três horas para ir trabalhar, recomeçar mais um ciclo, mas não consigo dormir, e acho que não quero, pois há tanto para admirar ainda, para saborear.

Deixem-me estar, vá lá, só mais um bocadinho.

Acordo com um flash e dores de cabeça enormes. É sempre assim quando passam os efeitos dos comprimidos, quando abro os olhos e tento ver o sol através das grades da janela deste hospital. Mas por momentos estive lá, onde queria, e isso é que interessa."

Nuno Almeida, Lugares Comuns
2008, Textos Soltos


boomp3.com

6 comentar

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29 abril, 2008 02:46 ×

Azeeeeel... sempre a surpreender-me!!! :)

'É tão giro ser tirano nestes impulsos, controlar o que vive e morre nesta democracia limitada, em que uma voz me diz para deixar viver as gotas, e outra me impele para as desfazer.' - Adorei esta frase! :) Ena! Tenho que a ler outra vez mas agora em silêncio. Espera..

............... é apenas uma frase mas torna-se muito mais do que isso. Ou não. Ou talvez sim. Não interessa, para mim está bonita.

O teu texto está... queria ser mais original, porque isto já se começa a tornar repetitivo, mas não encontro nada melhor para a descrever do que 'está mesmo bom!'

Identifiquei-o sempre contigo.
Cada frase, cada parágrafo e só mais para o fim é que reparei que te soltaste e de repente afinal já era um 'outro' qualquer que estava aqui. Ou eras tu mesmo, mas num local distante de onde te conheci...

Muito bom!

Isto todos os dias assim, habituas-nos mal. :P Tens consciência disso? :)

Vá, vai lá dormir e não te esqueças de tomar os comprimidos!
:p :p :p :p

**

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29 abril, 2008 02:48 ×

Ah e sim, a música já conhecia! Pois claro! :p

**

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7ze
admin
29 abril, 2008 09:42 ×

Por isso é que já nem comento no teu blog, Liliana, já parecia suspeito - para além de repetitivo - estar sempre a bajular a autora: esgotei os superlativos, Lilindooooh; E$pectacular! etc

Para mim, essa sensação de tirano é particularmente intensa perante uma teia de aranha bem feita: que incrível e desproporcionado poder o nosso, de, num simples gesto, desfazer uma obra tão consumada. Deve ser por isso que gosto do efémero de fazer castelos de areia na orla da rebentação, tempo e espaço roubados a uma nesga de areia entre marés.

Talvez por isso o desperdício sempre tenha servido como afirmação de poder... a «wasteful expenditure», o superfluo é que faz com que nos sintamos viver, não é a paparoca com que obviamos às nossas «necessidades».

Agora lembrei-me da função tradicional da FESTA (fausto?), com a sua dose de desperdício e permissividade face à violação do «protocolo» permitido da rotina.

Ocorre-me também o filme «Os deuses devem estar loucos», que foi acusado de ser um mito forjado pelo sistema do Apartheid, no que não concordo...

Ao contrário do nosso mundo «moderno», no qual, sob o signo da «abundância» se cria uma pressão para a miséria e a exclusão (se não comprares o segundo Black Trinitron como o teu vizinho - manter o «standing» - és um merdas); o filme mostra bem como no mundo tradicional é precisamente o contrário, sob uma aparência de «escassez» (ou mesmo da miséria total para alguns), vive-se uma abundância real.

Ou seja, ao contrário da nossa mentalidade, o valor dos objectos não tem a ver com a posse, a «propriedade» (conceito aliás desconhecido para os habitantes do deserto do Kalahari), mas sim com a partilha: um objecto é tão mais valioso quanto maior for a quantidade de pessoas a quem possa ser útil e benéfico...

Isto agora lembrou-me uma história africana que os brancos (em geral) têm dificuldade em perceber... Um europeu, recém chegado a África, conhecedor de uma história macaca de cornos e de marido enganado que apanhara o adúltero em flagrante e obtivera uma choruda compensação monetária, estranha muito encontrar numa esplanada os dois (ofensor e ofendido) em alegre confraternização... Vira-se para o ofendido e pergunta-lhe:
_Mas, ó homem, então não lhe faz confusão estar para aqui com o homem que o andava a enganar?
Ao que o outro (nem deve ter compreendido a questão) responde:
_Como assim? não faltava nenhum bocado à minha mulher!

Azel, tal como Miguel e Daniel, e todos os outros acabados em EL, são nomes de anjos, por isso natural que tenhas asas incluídas. De desejo, de inspiração... Boa!

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29 abril, 2008 09:53 ×

:) thx a ambos pelas palavras, Liliana e 7ze (concordo plenamente com muitas das situações que contas).

Lembro-me de ter visto pela primeira vez o filme Os Deuses Devem Estar Loucos numa aula qualquer, em que a professora nos resolveu mostrá-lo. Aquela cena inicial com a garrafa de coca-cola ficou pra sempre gravada na memória. :)

Em termos de textos (e não só), a fronteira é sempre muito ténue entre o que é real ou não, à medida que entro na pele das várias personagens, figuras, imagens e recordações que povoam a minha cabeça.

"close your eyes...
they've all gone now"

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Lucia
admin
02 maio, 2008 08:34 ×

Faltam três horas para ir trabalhar, recomeçar mais um ciclo, mas não consigo dormir, e acho que não quero, pois há tanto para admirar ainda, para saborear.

haha sem dúvida. ainda hoje me aconteceu isso e felizmente não tenho que ir trabalhar.

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02 maio, 2008 18:18 ×

ya, somos dois, apesar de ter sido uma ponte forçada no que me toca. :p

:)

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