A Outra Margem/As Canções de Amor


Ao mesmo tempo que recuperei a vontade e inspiração para a escrita pessoal, vi-me nestes últimos dois meses a ir mais vezes ao cinema que o que vinha acontecendo anteriormente, o que não me parece que seja mera coincidência, mas adiante. A Outra Margem, de Luís Filipe Rocha, acabei por o ver num impulso e é uma obra que tem tanto de simples como de uma beleza comovente.

O filme conta-nos a história de Ricardo, travesti e homosexual, que vê-se perdido na vida após a morte do seu namorado. A dada altura, e a convite da sua irmã para passar uns tempos em casa dela, irá conhecer o seu sobrinho Vasco, que sofre do Síndrome de Down. É precisamente na relação e vivência entre Ricardo e Vasco que centra-se muita da beleza deste filme, assim como na vontade e necessidade que muitas vezes as pessoas sentem em fazer as pazes com o passado, e na dificuldade que pode ser esse processo. Neste último campo a relação conflituosa de Ricardo com o seu pai é um perfeito exemplo, onde o conflito de gerações é bem patente, com este a nunca aceitar as opções de vida de Ricardo.


A Outra Margem acaba por ser filme que lida com alguns assuntos ainda tabus para muita gente, mas ao mesmo tempo não impinge lições morais ao espectador, não sendo aí que está o seu ponto forte, mas sim na tal relação entre Ricardo e Vasco, com a alegria e inocência deste a ajudar Ricardo a resolver os seus conflitos internos, com destaque para uma certa cena de uma peça de teatro no filme que me fez lembrar de maneira positiva o videoclip Svefn-g-englar dos Sigur Rós. Tal como este último, as lágrimas cairam-me não de tristeza, mas por outras razões, sendo bem provável que isso vá acontecer a outras pessoas no filme.

Um filme a não perder, onde o desempenho natural, realista e excelente dos actores e actrizes também é de louvar :)

Passando para as Canções de Amor...


Les Chansons d'amour no original, é o novo filme de Christophe Honoré (Dans Paris), e relata-nos inicialmente a história de Ismael, Alice e Julie, um rapaz e duas raparigas que vivem uma relação a três peculiar. Decorrendo nas ruas de Paris, o filme conta não só a vivência de várias pessoas à volta desse triangulo amoroso, como rapidamente surpreende os menos incautos ao incorporar na narrativa um formato musical, onde os actores cantam os seus textos e emoções. Apesar desta abordagem não se pense que estamos perante algo tipo os musicais de Hollywood à la Chicago ou Moulin Rouge, bem pelo contrário. Há aqui algo definitivamente europeu e francês, seja na abordagem musical como no resto.

Pela banda-sonora e respectivas músicas passará eventualmente alguma divisão em termos de reacção ao filme. Se eu adorei ao ponto de ter encomendado de seguida a OST do filme, certo é que a abordagem por vezes faz com cenas que deveriam ser mais dramáticas percam o seu impacto pela aparente boa disposição e alegria das canções que os actores interpretam.

Mas também aqui poderemos tirar outras ilações e sensações, uma delas a que muitas vezes a vida não é justa, fácil e por aí adiante, mas que temos de tentar seguir em frente por muito que nos custe. Aliado a isso temos o retrato das relações entre as pessoas no filme, que não várias vezes me deram uns dejá vus pela familiaridade de algumas coisas que já vivi na pele ou que já presenciei noutras pessoas. No fundo o filme acaba por ser um relato de um dia a dia de pessoas que podiam bem ser os nossos vizinhos do lado por assim dizer.

Existem outras mensagens espalhadas pelo filme, como os títulos dos livros que as personagens estão a ler em algumas cenas, assim como outra que aparece de maneira clara no filme em forma de frase (ver fim do texto), ficando ao critério de cada um a sua interpretação, e quem sabe se possa prolongar por aqui a breve discussão que se proporcionou no falecido site Fibrilações sobre ela...

Um filme que dá para rir, chorar e que nos faz viajar para fora do nosso quotidiano e dia a dia. Quando sai do cinema estava ainda com mais energia e ideias que o normal, com vontade de fazer coisas.


oh, e aqui fica a tal frase...

"Ama-me menos, mas por mais tempo"

4 comentar

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Anónimo
admin
20 novembro, 2007 19:00 ×

:))
Bem e então, a frase que sentido te fez?

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20 novembro, 2007 19:40 ×

Em certos aspectos, que invés das relações pouco estáveis, tanto antes de certo acontecimento a meio do filme, como depois quando o Ismael estra numa espiral autodestrutiva para lidar com a dor, que por vezes é bom teres algo mais estável, mesmo que não seja tão intenso, do que algo com mais chama mas que se pode tornar fugaz e morrer em pouco tempo.

Fora isso, e tendo em conta a altura em que aparece a frase no filme, que o Ismael, tal como muitas pessoas no dia a dia, procuram isso invés da cena de várias pessoas acharem-lhe piada, mas apenas para o "comerem" ou usarem-no naquele momento e mais nada.

Que ele, no fundo, tal como muitas pessoas, desejam construir um futuro com alguém? :)

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Anónimo
admin
20 novembro, 2007 19:50 ×

Acho que o amor pode ser canibal. Acho que de certa forma é sempre... O acto de te verteres em alguém é uma coisa estranha, aproxima-nos da morte e morres sempre que ele (o amor) morre. Acho que o Ismael tenta fugir desse destino num sentido mais literal... E talvez a única forma de o fazer seja através de um outro amor... E afinal talvez seja memo na proximidade da morte que nos sintamos mais vivos... E vivemos em carne viva, a fibrilar constantemente...

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20 novembro, 2007 20:43 ×

sim, de certa forma ele é sempre canibal no sentido de uma parte de ti morrer quando um amor/relação morre, o que pode criar ansiedades, inseguranças e defesas quando as coisas correm mal.

Assim como pode acontecer uma pessoa ficar com uma dependencia das sensações boas que uma relação tem sempre, e entrar num caminho que pode ser destrutivo, de tentares encontrar de maneira desesperada um amor para compensar a perda de outro. Quem sabe seja isso que o filme mostra quando o Ismael entra nesse caminho de relações fugazes a meio do filme.

Talvez a tal frase tenha a ver também com isso, de ele querer encontrar novamente certas sensações, mas que perdurem mais tempo.O que por sinal é algo muito comum a quem acaba uma relação e deseja que um dia apareça outra mas que não acabe tal como aconteceu antes.

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