Mesa-de-cabeceira: Annette Wieviorka - Auschwitz explicado à minha filha

Annette Wieviorka - Auschwitz explicado à minha filha (trad. Miguel Serras Pereira - Celta, 1999)

“O que me impressionou, quando tentei responder a Mathilde, para lhe explicar o que era Auschwitz, foi o facto de as suas perguntas serem as mesmas que eu me punha a mim própria, indefinidamente, ou que desde há meio-século atravessam a reflexão dos historiadores e filósofos, sendo extremamente difícil responder-lhes. A diferença era que Mathilde fazia essas mesmas perguntas em termos mais crus e mais directos.”

(in Auschwitz explicado à minha filha, p. 3)













O primeiro contacto com este livro da historiadora francesa Annette Wieviorka surgiu através do nosso querido amigo, o escritor Daniel da Rocha da Leite, ao partilhar connosco a versão em português do Brasil publicada pela Via Lettera Editora, traduzida por Maria Beatriz de Medina. Uns meses mais tarde, fruto do acaso, acabaria por tomar conhecimento da existência de uma edição portuguesa desta obra, sendo essa versão a utilizada para a base deste artigo.

“Os prisioneiros tinham entrado num outro mundo. É isso que muitos sobreviventes exprimem nos seus testemunhos. Mas é provavelmente Primo Levi quem o diz melhor: “imagine-se agora um homem privado não só dos seres que ama, mas também da sua casa, dos seus hábitos, da sua roupa, de tudo enfim, literalmente de tudo o que possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento e à necessidade, privado de qualquer discernimento, esquecido de toda a dignidade: porque não é raro que quem perdeu tudo se perca a si próprio (…)””

(in Auschwitz explicado à minha filha, p. 9)

Nas páginas iniciais de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (trad. Galina Mitrakhovich - Elsinore, 2016), a escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Alexievich interroga-se sobre o dilema de como contar à sua filha de seis anos o trabalho a que se dedica: “(…) Mas como explicar a guerra a uma criança? Como explicar a morte? Como responder à pergunta: porque matam lá? Até matam crianças pequenas, como ela. Entre nós, adultos, existe como que um entendimento. Compreendemos de que se trata. E as crianças?”. E é esta questão delicada a premissa de Auschwitz explicado à minha filha, apesar da diferença considerável entre as duas obras. Neste livro, a autora tenta elucidar a sua filha de 13 anos, Mathilde, sobre o genocídio dos judeus perpetrado pelos nazis na 2ª Guerra Mundial, com ênfase no campo de concentração de Auschwitz. Estruturado como um diálogo entre mãe e filha, de perguntas e respostas, o livro tenta explicar, de forma simples (mas sem simplificar), acontecimentos, processos e termos relativos a este período negro da História. Se o título parece indicar um público-alvo jovem, assim como a capa e edição em si, o conteúdo depressa contraria essa ideia, podendo desafiar, até, o nosso conhecimento. Em parte, o todo lembra uma aula, connosco no papel de alunos/Mathilde e Annette no de professora.

“– E o que é que quer dizer “holocausto”?
– Nos Estados Unidos, o único termo utilizado é “holocausto”. Mas é uma palavra que não me agrada. Significa “sacrifício pelo fogo” e pode deixar pensar que os Judeus se sacrificaram, ou foram sacrificados, a Deus. (...)”

(in Auschwitz explicado à minha filha, p. 25)

A edição portuguesa é um livro de pequenas dimensões, com ilustração de capa de Paula Neves, mas pedia-se um maior cuidado na revisão, ainda mais numa obra com meras 60 páginas. Em várias alturas “gaseamento” e palavras derivadas aparecem escritas com z, por exemplo, chegando a mudar ("gas.../gaz...") entre frases no mesmo parágrafo, ou esta estranha tradução na página 6:

– Uma rusga? O que vem a ser isso?
É uma prisão colectiva, ou em massa, que a polícia opera de surpresa.”

Esta tradução surge de uma opção tomada no final da resposta anterior, a descrever um acontecimento marcante do conflito como rusga e conjunto de prisões em massa, mas em rigor uma rusga não é uma prisão. Mesmo com estes percalços ocasionais, o texto flui e não apresenta dificuldades de compreensão. A linguagem é clara e beneficia a riqueza das informações.

“(…) De toda esta gente, ninguém tem uma visão clara da maneira como o seu trabalho se insere na cadeia que, bem vistas as coisas, permite exterminar milhões de pessoas. O indivíduo não fez aparentemente nada de mal, limitou-se a fazer apenas e conscienciosamente o seu trabalho. [..] Uma simples assinatura de um funcionário que obedece ao seu superior hierárquico é susceptível, em certas circunstâncias, de enviar pessoas para a morte. E há, além disso, toda essa indiferença que tantas vezes encontramos: a indiferença tanto dos vizinhos como das grandes potências.”

(in Auschwitz explicado à minha filha, p. 59)

Vinte anos depois (a edição original data de 1999), Auschwitz explicado à minha filha continua a ser um pequeno livro fundamental para tentar compreender a dimensão do horror, da maldade e indiferença, dos limites da humanidade. A própria autora salienta o incompreensível em tudo o que envolve Auschwitz e outros campos, ou dos guetos na Polónia, etc., apesar das explicações e factos históricos, das tentativas de racionalizar. Saliente-se também a menção neste livro a outros grupos visados pelos nazis na sua ideologia de morte, inclusive no próprio país. Cidadãos que se opunham a Hitler, pessoas com doenças mentais, ciganos, homossexuais, entre outros. Uma das mais-valias da obra é a sua capacidade de ir aos detalhes que escapam ao senso comum, de ensinar. Desde a distinção dos campos (concentração vs. centros de morte), dos seus métodos de funcionamento, de Auschwitz ser o único campo onde o número dos prisioneiros era inscrito na sua carne, dos porquês de este campo se ter tornado o mais célebre, até às possíveis razões das grandes potências aliadas não terem feito nada para travar estes acontecimentos. Atendendo aos tempos correntes, de regressão gradual de valores, ignorância e saudosismos criminosos, bacocos e imperdoáveis, a pertinência desta obra carece de explicações.

Para quem estiver interessado, a melhor opção para encontrar este livro pode passar por uma visita à página oficial das lojas mbook. Sim, aquelas tendas com livros espalhadas por vários pontos do país, estações de metro inclusive. Foi esse o meu caso, custando-me a módica quantia de 1.50€.