“(…) fui confrontada mais de uma vez com estas duas verdades, que convivem na mesma pessoa: a sua verdade pessoal, confinada à clandestinidade, e uma verdade comum, impregnada do espírito da época. A primeira raramente resistia ao impacto total da segunda. Se no apartamento, por exemplo, além da minha interlocutora estava algum familiar, conhecido ou vizinho (em especial, homens), ela era menos sincera e confidente do que se ficássemos a sós. Ela já estava a falar para o público. Para o espectador. (…)”
(Svetlana Alexievich in A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, pp. 135-136)
«A rua vive há horas debaixo do sol da manhã. Ainda tentei falar com ela. Com a rua. Sim, a rua. Uns momentos apenas, pequenos percalços da fuga à rotina. Os raios de luz, tímidos, preferem ficar à porta da loja. O interior é rico em publicações das mais variadas naturezas. O jornal de eleição do público oferece hoje uma medalha de oração a Santa Teresinha. Não questiono, o meu papel é outro, mas as palavras são importantes, precisam de descodificador. É necessário perceber o abstracto da ordenação das letras, do enredo a tocar nos pontos certos, a criar impulsos assentes na fragilidade das pessoas. Um cliente pega no referido jornal e pede uma raspadinha para levar. Rosto cândido, diz-me para não esquecer a medalhinha. Desabafa com naturalidade: “Já tive três AVC. Faz parte da vida”. E sai com um sorriso. Nunca mais o esqueci.
Este negócio alimenta-se de antecipação, de perceber quando mudar o foco para a próxima interacção social. O meu semblante muda num ápice, característica inata. E os olhos, serão eles traidores desse dom, ou cúmplices naturais, pergunto-me em silêncio. Se a pessoa é cliente habitual trocam-se histórias, fala-se da família. Vendo mais uma raspadinha. Nada se esconde.
Horário de encerramento. Procuro a língua comum da rua. Ser outra agora, conversar com o vazio. Prossigo.»
(Svetlana Alexievich in A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, pp. 135-136)
«A rua vive há horas debaixo do sol da manhã. Ainda tentei falar com ela. Com a rua. Sim, a rua. Uns momentos apenas, pequenos percalços da fuga à rotina. Os raios de luz, tímidos, preferem ficar à porta da loja. O interior é rico em publicações das mais variadas naturezas. O jornal de eleição do público oferece hoje uma medalha de oração a Santa Teresinha. Não questiono, o meu papel é outro, mas as palavras são importantes, precisam de descodificador. É necessário perceber o abstracto da ordenação das letras, do enredo a tocar nos pontos certos, a criar impulsos assentes na fragilidade das pessoas. Um cliente pega no referido jornal e pede uma raspadinha para levar. Rosto cândido, diz-me para não esquecer a medalhinha. Desabafa com naturalidade: “Já tive três AVC. Faz parte da vida”. E sai com um sorriso. Nunca mais o esqueci.
Este negócio alimenta-se de antecipação, de perceber quando mudar o foco para a próxima interacção social. O meu semblante muda num ápice, característica inata. E os olhos, serão eles traidores desse dom, ou cúmplices naturais, pergunto-me em silêncio. Se a pessoa é cliente habitual trocam-se histórias, fala-se da família. Vendo mais uma raspadinha. Nada se esconde.
Horário de encerramento. Procuro a língua comum da rua. Ser outra agora, conversar com o vazio. Prossigo.»
Nuno 'Azelpds' Almeida, Textos Soltos, 2019
Do foco inactivo
Guardar [MP3, ZIP] Duração [1h20m37s] Data: 17-06-2019
Playlist:
01. Snowdrops - Circles
02. Sophie Jamieson - Other
03. Evi Vine - I Am The Waves
04. Ioanna Gika - Out of Focus
05. Chasms - Every Heaven in Between
06. Lucky and Love - Soul Alive
07. Public Memory - Red Rainbow
08. Ritual Howls - I Can Hear Your Tears
09. Undertheskin - Burn
10. Japan Suicide - Mishima
11. Starframes - Dear Akelei
12. Freedom Candlemaker - Miss Sadness
13. Saycet - Quiet Days
14. BirdPen - This Is Your Life
15. The Twilight Sad - Auge/Maschine
16. Rev Rev Rev - Clutching The Blade
17. Whispering Sons - Skin
18. Seven Saturdays - Whispers in the Static
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