Aminha relação com os livros é complicada. Ou melhor, tornou-se complicada na transição da adolescência para a idade adulta. Antes de tal drama, lia sofregamente e escrevia da mesma forma, até ao dia em que me deparei com o inesperado das coincidências. Ter observado semelhanças na minha escrita e maneira de pensar com autores e livros com quem nunca tivera um contacto anterior. Assustado, decidi quebrar com qualquer eventual influência exterior literária porque certamente ninguém iria acreditar em coincidências pensei cá para comigo. A propensão para o drama era grande. Desde esse momento, continuei a escrever desalmadamente e a procurar a minha voz. Já os livros, esses, não voltaram a ser lidos da mesma forma ou ao mesmo ritmo.
Estes três livros são alguns dos que ocupam actualmente a minha mesa-de-cabeceira, assim como tem sido normal observarem-me com eles fora de casa como sucedeu recentemente nas feiras em que estive presente com as Edições Cellophane. Este artigo serve o propósito de promover um pouco estas obras, como de reconciliação com o passado. Será que no futuro isto poderá transformar-se em secção regular? Não faço ideia por agora.
Gisela Cañamero - Poderia a poesia (arte pública, 2016)
"A minha amiga assegurou-me
que é fácil passar para o lado de
tirar a vida
basta não pensar noutra coisa
a não ser nisso
basta ser firme
acordar com o pensamento
e não lhe dar sumiço."
("A Suicida", p. 24)
Já tive a oportunidade de escrever anteriormente sobre este livro maravilhoso aquando da performance que o acompanha. Continua a marcar-me. Das palavras ao design gráfico, à edição limitada, numerada e realizada em vários tipos de papel diferente. É um dos melhores livros que me chegou às mãos nos últimos tempos. Poesia que nos toca, que invoca memórias, que nos desarma quando menos esperamos.
“aprendi a amar os bosques
a só ver nos bosques a excepção
para a dignidade da atenção humana”
(in "O meu avô Roger", p. 57)
A musicalidade dos versos, a cadência com que as palavras escorrem no papel e nos dedos. Por vezes esboçamos um sorriso com alguns pormenores do nosso quotidiano absurdo, espelhados na perplexidade que a autora nos transmite. Actualmente o livro está na sua terceira edição e cada uma delas tem sido diferente da anterior. A 1ª edição, de Março de 2016, foi de 20 exemplares. A 2ª, de Maio de 2016, teve direito a 50 exemplares. A 3ª, de Agosto de 2016, utiliza papel branco e, no processo, é mais barata do que as anteriores apesar de manter o grafismo e conteúdo. Para encomendas podem encontrar todos os detalhes na página facebook dedicada ao livro.
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Maria Quintans - Décimo terceiro andamento & Chama-me Constança (Edições Guilhotina, 2015)
Maria Quintans é o perfeito exemplo do que descrevo no início deste artigo sobre coincidências sempre que me deparo com textos desta autora. No caso deste livro, tomei contacto com ele após assistirmos a uma adaptação livre, em forma de peça de teatro, de alguns dos textos que formam o corpo desta obra. A peça em si não gostei e pouco ou nada me disse, a tal ponto que senti que o conteúdo merecia algo diferente, bastante mais sério e menos leviano para as palavras que se escutavam. E foram essas, as palavras, as frases marcadas na carne, que nos levaram a adquirir o livro.
“Os meus pés já não cabem nos sapatos, mãe. Ando descalça e regalada com os dedos na consciência dos dias. E gosto de sentir o bico das mamas inchados na boca dos homens que me desejam. Não tenho mais para te dizer. Gosto das bocas dos homens no meu vestido de água.”
(in Décimo terceiro andamento, p. 22)
Limitado a 100 exemplares, este livro junta dois textos da autora. O primeiro, Décimo terceiro andamento, descrito como monólogo, retrata a relação delicada entre uma mãe e filha. Detalhe curioso e nada ao acaso: cada andamento dos 13 que compõem o conjunto tem menção no título a uma música ou som. O segundo, Chama-me Constança, é uma 2ª edição, alterada, do título homónimo cuja primeira edição é de 2010. Em ambos ficamos encantados/desconcertados ao ritmo de uma prosa poética que nos entra nos ossos, com vários momentos que ficam em nós e uma forma de escrever muito particular.
Constança.
Nunca existiu. E sempre soubeste da pequena lâmpada acesa na mesa-de-cabeceira a suspender livros e o cérebro amarelo das quintas-feiras, com pingo no nariz e o carro. Constança, ainda quente, a ferver de estradas a lamber alcatrão por onde nunca passámos porque o cão nos mordiscava nas pernas o sentido inventado de um cérebro amarelo.
(in Constança, p. 49)
Para adquirirem o livro, podem tentar através da página facebook da editora, ou do seguinte e-mail edicoesguilhotina@gmail.com, ou em livrarias como a Ler Devagar, Sr Teste, Livraria Barata, Pó dos Livros, Leituria e Letra Livre.
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Vergílio Ferreira - Aparição (Bertrand Editora, 65ª edição 2003)
Este romance, editado pela primeira vez em 1959, é uma das obras maiores de Vergílio Ferreira. A obra relata-nos, na primeira pessoa, a história de Alberto Soares, professor de liceu que chega à cidade de Évora. Aí depara-se com uma sociedade fechada, católica, num período de ditadura. Numa altura em que estou a escrever um novo livro e com contornos diferentes dos anteriores, não será de estranhar que me rodeie actualmente de obras como esta. Ler tende a ser um dos melhores exercícios para evoluirmos.
"Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens."
(in Aparição, p. 9)
Dividido em três partes (prólogo, miolo e epílogo), o primeiro contacto com o livro foi atribulado devido às linhas temporais em que se passa a acção de cada secção e ao próprio estilo de cada uma delas. Para dar um contexto melhor, a início encontramos a personagem principal mais velha, a descrever as suas memórias por exemplo, como pouco depois estamos a viver na primeira pessoa, algo abruptamente, a outra linha temporal em que ela é mais jovem. A personagem, ao longo da narrativa, procura a sua voz e essência, reflecte sobre o seu/nosso papel no mundo. O tema será familiar para quem conhecer as bases do Existencialismo, movimento filosófico e literário dos séculos XIX e XX.
"Há uma vida atrás da vida, uma irrealidade presente à realidade, mundo das formas de névoa, mundo incoercível e fugidio, mundo da surpresa e do aviso. Assim o próprio presente pode ter a voz do passado, vibrar como ele à obscuridade de nós. A minha retórica vem do desejo de prender o que me foge, de contar aos outros o que ainda não tem nome e onde as palavras se dissipam como a névoa do que narram."
(in Aparição, p. 80)
Ao contrário dos outros dois livros de que falo neste artigo, Aparição é relativamente fácil de encontrar nas livrarias. É um livro de perguntas, de reflexões que nos impelem a pensar sobre vários aspectos da vida.
Estes três livros são alguns dos que ocupam actualmente a minha mesa-de-cabeceira, assim como tem sido normal observarem-me com eles fora de casa como sucedeu recentemente nas feiras em que estive presente com as Edições Cellophane. Este artigo serve o propósito de promover um pouco estas obras, como de reconciliação com o passado. Será que no futuro isto poderá transformar-se em secção regular? Não faço ideia por agora.
Gisela Cañamero - Poderia a poesia (arte pública, 2016)
"A minha amiga assegurou-me
que é fácil passar para o lado de
tirar a vida
basta não pensar noutra coisa
a não ser nisso
basta ser firme
acordar com o pensamento
e não lhe dar sumiço."
("A Suicida", p. 24)
Fotografia: Laura del Rio
Já tive a oportunidade de escrever anteriormente sobre este livro maravilhoso aquando da performance que o acompanha. Continua a marcar-me. Das palavras ao design gráfico, à edição limitada, numerada e realizada em vários tipos de papel diferente. É um dos melhores livros que me chegou às mãos nos últimos tempos. Poesia que nos toca, que invoca memórias, que nos desarma quando menos esperamos.
“aprendi a amar os bosques
a só ver nos bosques a excepção
para a dignidade da atenção humana”
(in "O meu avô Roger", p. 57)
A musicalidade dos versos, a cadência com que as palavras escorrem no papel e nos dedos. Por vezes esboçamos um sorriso com alguns pormenores do nosso quotidiano absurdo, espelhados na perplexidade que a autora nos transmite. Actualmente o livro está na sua terceira edição e cada uma delas tem sido diferente da anterior. A 1ª edição, de Março de 2016, foi de 20 exemplares. A 2ª, de Maio de 2016, teve direito a 50 exemplares. A 3ª, de Agosto de 2016, utiliza papel branco e, no processo, é mais barata do que as anteriores apesar de manter o grafismo e conteúdo. Para encomendas podem encontrar todos os detalhes na página facebook dedicada ao livro.
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Maria Quintans - Décimo terceiro andamento & Chama-me Constança (Edições Guilhotina, 2015)
Maria Quintans é o perfeito exemplo do que descrevo no início deste artigo sobre coincidências sempre que me deparo com textos desta autora. No caso deste livro, tomei contacto com ele após assistirmos a uma adaptação livre, em forma de peça de teatro, de alguns dos textos que formam o corpo desta obra. A peça em si não gostei e pouco ou nada me disse, a tal ponto que senti que o conteúdo merecia algo diferente, bastante mais sério e menos leviano para as palavras que se escutavam. E foram essas, as palavras, as frases marcadas na carne, que nos levaram a adquirir o livro.
“Os meus pés já não cabem nos sapatos, mãe. Ando descalça e regalada com os dedos na consciência dos dias. E gosto de sentir o bico das mamas inchados na boca dos homens que me desejam. Não tenho mais para te dizer. Gosto das bocas dos homens no meu vestido de água.”
(in Décimo terceiro andamento, p. 22)
Limitado a 100 exemplares, este livro junta dois textos da autora. O primeiro, Décimo terceiro andamento, descrito como monólogo, retrata a relação delicada entre uma mãe e filha. Detalhe curioso e nada ao acaso: cada andamento dos 13 que compõem o conjunto tem menção no título a uma música ou som. O segundo, Chama-me Constança, é uma 2ª edição, alterada, do título homónimo cuja primeira edição é de 2010. Em ambos ficamos encantados/desconcertados ao ritmo de uma prosa poética que nos entra nos ossos, com vários momentos que ficam em nós e uma forma de escrever muito particular.
Constança.
Nunca existiu. E sempre soubeste da pequena lâmpada acesa na mesa-de-cabeceira a suspender livros e o cérebro amarelo das quintas-feiras, com pingo no nariz e o carro. Constança, ainda quente, a ferver de estradas a lamber alcatrão por onde nunca passámos porque o cão nos mordiscava nas pernas o sentido inventado de um cérebro amarelo.
(in Constança, p. 49)
Para adquirirem o livro, podem tentar através da página facebook da editora, ou do seguinte e-mail edicoesguilhotina@gmail.com, ou em livrarias como a Ler Devagar, Sr Teste, Livraria Barata, Pó dos Livros, Leituria e Letra Livre.
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Vergílio Ferreira - Aparição (Bertrand Editora, 65ª edição 2003)
Este romance, editado pela primeira vez em 1959, é uma das obras maiores de Vergílio Ferreira. A obra relata-nos, na primeira pessoa, a história de Alberto Soares, professor de liceu que chega à cidade de Évora. Aí depara-se com uma sociedade fechada, católica, num período de ditadura. Numa altura em que estou a escrever um novo livro e com contornos diferentes dos anteriores, não será de estranhar que me rodeie actualmente de obras como esta. Ler tende a ser um dos melhores exercícios para evoluirmos.
"Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens."
(in Aparição, p. 9)
Dividido em três partes (prólogo, miolo e epílogo), o primeiro contacto com o livro foi atribulado devido às linhas temporais em que se passa a acção de cada secção e ao próprio estilo de cada uma delas. Para dar um contexto melhor, a início encontramos a personagem principal mais velha, a descrever as suas memórias por exemplo, como pouco depois estamos a viver na primeira pessoa, algo abruptamente, a outra linha temporal em que ela é mais jovem. A personagem, ao longo da narrativa, procura a sua voz e essência, reflecte sobre o seu/nosso papel no mundo. O tema será familiar para quem conhecer as bases do Existencialismo, movimento filosófico e literário dos séculos XIX e XX.
"Há uma vida atrás da vida, uma irrealidade presente à realidade, mundo das formas de névoa, mundo incoercível e fugidio, mundo da surpresa e do aviso. Assim o próprio presente pode ter a voz do passado, vibrar como ele à obscuridade de nós. A minha retórica vem do desejo de prender o que me foge, de contar aos outros o que ainda não tem nome e onde as palavras se dissipam como a névoa do que narram."
(in Aparição, p. 80)
Ao contrário dos outros dois livros de que falo neste artigo, Aparição é relativamente fácil de encontrar nas livrarias. É um livro de perguntas, de reflexões que nos impelem a pensar sobre vários aspectos da vida.
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