Poderia a Poesia: As entranhas da vida


“No tempo em que as lojinhas de bairro
ficavam perto
e tinham apenas
dois ou três modelos de sapatos
não havia
filhos esquecidos nos carros.”


Descrever o que se passou ontem no espaço O'culto da Ajuda, em Lisboa, não será, de todo, possível. Era preciso estarmos presentes, seria necessário sentir o silêncio antes de cada palavra, de cada narrativa, observar atentamente os detalhes, absorver tudo o que havia para contar, todas as palavras. Crua, emocional, corrosiva e profundamente pessoal, foi tudo isso e muito mais a performance poética Poderia a Poesia, de Gisela Cañamero, com poemas da sua autoria.

Foi uma oportunidade única de sentirmos as entranhas de uma vida, da vivência à flor da pele, de lidar com fantasmas comuns a muitos de nós. Quem nunca perdeu um ente querido e próximo por exemplo? Única devido ao espectáculo em si, mas também porque rareiam as hipóteses dele ser apresentado ao vivo pelas mais diversas razões, sejam elas devido à programação dos espaços, desconhecimento ou meios. E foi assim que ontem a autora-performer rumou do seu monte idílico em Vila de Frades, Beja, para nos dar um pouco de si, ou tudo.
Há a poesia, sempre ela, o foco central, os poemas que captam toda a nossa atenção.
Os objectos no palco, comuns, do dia-a-dia, escolhidos a dedo, a disposição. Há a vertente de performance, há uma componente teatral, há momentos que nos permitem respirar um pouco e rir não sabemos bem porquê, talvez para desanuviar do incómodo de algumas das passagens, há momentos em que se ouvem trechos sonoros e canções interpretadas pela própria Gisela e que nos deixam entre o emocionado e o estupefacto, que nos desarmam. Como esquecer a melodia e as palavras relacionadas com a senhora que, após 50 anos, decidiu por termo aos abusos que sofria em casa, cantada de machado em riste? Há a poesia, sempre ela, o foco central, os poemas que captam toda a nossa atenção.

“Tu próprio não queres ser bem coisa viva
revolta-te a perspectiva
do envelhecer e do morrer
a própria natureza da vida é um embaraço
e contra ele ergues um cativeiro
munido de cadeados e ferrolhos
para que do tempo da mudança perpasse apenas
um ligeiro sopro.”


Um espectáculo maravilhoso, que engana pela sua aparente simplicidade inicial e que revela gradualmente a sua complexidade. Durante cerca de 1h30m o tempo parou e o mundo era ali. Não posso deixar de referir também o livro (que vai na 2ª edição) que acompanha esta performance e que podia ser adquirido no local, cujo design gráfico (por Ana Rodrigues) é fantástico, com uma vertente artesanal e diferentes tipos de papel. Um objecto lúdico de resistência.


São momentos como este que nos fazem ter esperança nestas coisas, que nos motivam e inspiram, que nos mostram como a Poesia pode realmente mudar algo.