Os desvarios dos cafés - Alice I


Sapatos pretos, de criança, o vestido azul pouco passa dos joelhos. Alice espreitou a janela encoberta pelos estores cor de carmim e viu o Outono envergonhado a olhar para ela com ar de timidez genuína. Esta é a pior altura do ano. É nestes meses que mais sente a falta dos pais nos cafés que bebe com os maxilares cerrados. Seis colheres de açúcar até Dezembro, nada é suficiente para disfarçar a amargura. Mandou construir cúpulas em todas as divisões da casa para pintar frescos que representassem um ideal de família. Pai e mãe, um irmão, dois gatos, tudo funciona por pares, combate-se a solidão com a diversidade de género.

Alice corre todos os dias para se esconder da rapidez dos pensamentos, cabeça aparada pelas mãos, pernas flectidas, cabelos ao abandono. Dói-lhe a vida traquina. Há um entendimento na desordem das manhãs que lhe polvilha as pálpebras de branco, doença da pele, enfermidade dos nervos. Todos os dias ela promete que amanhã será diferente, que os distúrbios sisudos vão passar com a próxima dose. Seis colheres de açúcar, seis colheres de açúcar, só preciso de mais seis colheres de açúcar para transformar o destino. Sem perguntas, sem questionar, o sopro gustativo na garganta sequiosa, os disparos activos nas sinapses, qualquer coisa, qualquer coisa, qualquer coisa para afastar a comichão nos braços e a cor mortiça das folhas na rua, qualquer coisa caramba.

A idade é a de quem morre cedo, pupilas vidradas nas fotografias de tempos passados, dedos trémulos nas memórias, há uma razão para que a magia se apresente como real. As unhas que arranham os móveis durante a noite, as mesmas que pegam na caneta com a firmeza necessária para rasgar as páginas dos cadernos que guarda religiosamente numa das gavetas da mesa de cabeceira. Metódica, elabora estudos patriarcais, formas, debita palavras com a força de tufões. Ensinar, ensinar, encher a alma do conhecimento necessário para se distrair da orfandade de ser. Seis colheres de açúcar, seis colheres de açúcar, seis colheres de açúcar.

Nuno Almeida
Contos do Tirano

2012

Domino effect

Guardar [MP3, ZIP] Duração [46:30] Data: 04-10-2012

Playlist:
01. And Also the Trees - Mary of the Woods
02. Black Swan Lane - Things You Know and Love
03. me.man.machine. - The Drifter
04. My TV is Dead - As fast as you can
05. Ladycop - Wicked
06. Aube L - I Promise To Myself
07. The White Space - Simbday (remix)
08. The Foreign Resort - Orange Glow (Novachild Remix)
09. Mantra - Our Disease
10. Mahogany - Domino Ladder Beta
11. Múm - Finally we are no one