Maria passava as tardes a jogar às cartas nas escadas do seu prédio de eleição. Todos os dias escolhia um local diferente, tocava às campainhas e dizia que era publicidade ou o correio consoante a resistência dos inquilinos em abrir-lhe a porta. Os seus amigos, fiéis companheiros do imaginário fértil, sentavam-se na sua frente à espera da sua vez de contar uma história. Era uma das regras quando alguém ganhava uma mão, oferecer as palavras aos azulejos amarelados.
Quando não queria a companhia das perturbações, cruzava as pernas e estabelecia diálogo com as figuras de cartão. Paciência não era muito com ela, mas admirava a arte antiga e o cuidado empregado nas versões dos baralhos partilhados na sua família ao longo das gerações.
Não teve filhos, não teve netos, não teve escolha. Teve um marido, teve o amor assolapado no corpo e na vertigem. Teve os sonhos nos seus braços. A doença, no seu pedestal de insensível, fez com esquecesse a morte das barreiras e dos encontros clandestinos. Quem a conhecia desenvolveu teorias várias, uma delas dava conta de que a perda de memória era uma defesa contra os demónios que a assaltavam de noite.
À medida que a luz que lhe iluminava os olhos deixava de ser natural, a actividade neurológica sofria uma mudança radical. Fazia-se acompanhar de inúmeros cadernos que escondia num saco ao ombro. No seu interior escondia também lápis de cor e canetas que tinham de escrever obrigatoriamente numa tonalidade, azul. Embevecia-se com desenhos, escrevia estrofes para o marido, fazia círculos atrás de círculos, com símbolos no interior de cada um que representavam as armadilhas do tempo. Dizia-se que rejuvenescia dez anos a cada caderno que completava.
Quando deixou de bater às portas, encontraram nas escadas de um prédio apenas o saco com os seus baralhos de cartas, cadernos, canetas e lápis. Diz-se que voltou à terra, que tanto escreveu e desenhou que está agora no ventre de uma mulher, pronta a nascer de novo.
Nuno Almeida
Contos do Tirano
2012
Quando não queria a companhia das perturbações, cruzava as pernas e estabelecia diálogo com as figuras de cartão. Paciência não era muito com ela, mas admirava a arte antiga e o cuidado empregado nas versões dos baralhos partilhados na sua família ao longo das gerações.
Não teve filhos, não teve netos, não teve escolha. Teve um marido, teve o amor assolapado no corpo e na vertigem. Teve os sonhos nos seus braços. A doença, no seu pedestal de insensível, fez com esquecesse a morte das barreiras e dos encontros clandestinos. Quem a conhecia desenvolveu teorias várias, uma delas dava conta de que a perda de memória era uma defesa contra os demónios que a assaltavam de noite.
À medida que a luz que lhe iluminava os olhos deixava de ser natural, a actividade neurológica sofria uma mudança radical. Fazia-se acompanhar de inúmeros cadernos que escondia num saco ao ombro. No seu interior escondia também lápis de cor e canetas que tinham de escrever obrigatoriamente numa tonalidade, azul. Embevecia-se com desenhos, escrevia estrofes para o marido, fazia círculos atrás de círculos, com símbolos no interior de cada um que representavam as armadilhas do tempo. Dizia-se que rejuvenescia dez anos a cada caderno que completava.
Quando deixou de bater às portas, encontraram nas escadas de um prédio apenas o saco com os seus baralhos de cartas, cadernos, canetas e lápis. Diz-se que voltou à terra, que tanto escreveu e desenhou que está agora no ventre de uma mulher, pronta a nascer de novo.
Nuno Almeida
Contos do Tirano
2012
Um coração apaixonado é um coração odiado
Guardar [MP3, ZIP] Duração [31:50] Data: 27-03-2012
Playlist:
01. Gazelle Twin - View of a Mountain
02. Zelmershead - Ananke
03. Venetian Snares - Szamár Madár
04. Azoora - Motionless
05. Front Line Assembly - Don't Trust Anyone
06. Archive - Parvaneh (Butterfly)
07. Mmpsuf - The Winds
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