Estou entre amigos, jantar regado a vinho e cigarros fumados no parapeito, hoje preciso de dançar. Tu, infelizmente, já estás num estado que não me serve para nada.
Descemos à rua, os decibéis das conversas a ecoarem pelo prédio, pernas a cambalearem nos encostos ocasionais, roupas espalhadas junto a caixotes do lixo, temos em nós toda a sabedoria, a razão é nossa e o riso solta-se de possíveis algemas nas partilhas sem entrelinhas. O sorriso com que sou recebida, cerca de meia hora mais tarde, pelo porteiro do espaço nocturno onde decidimos entrar e, ainda por cima, sem pagar, mostra-me que neste momento o poder é meu e que existem vantagens em ser uma rapariga levemente gira e tocada. Siga, não quero saber.
As paredes velhas, as luzes de tons avermelhados, a brincarem com a bola de espelhos estrategicamente colocada, estou maravilhada, pelo menos até encontrar aqueles olhos, desconhecidos, a um canto. Esta noite vai ser a minha desgraça, ou a minha libertação. Lavar as mãos, preciso de mergulhar mais fundo.
Sentada na casa-de-banho, por sinal menos decadente do que esperava apesar de não ter trinco, distraio-me no tempo, a música agrada-me, conheço isto, porta entreaberta, conheço-te a ti também, desconhecido, que entras agora, sem me deixares terminar o que estava a fazer. O calor é insuportável, limpas-me com a tua boca e isso deixa-me doida, raios, o que esperei por isto e quem raios és tu penso também por segundos, mas deixo ver até onde isto vai.
Empurro-te, já chega. Quero dançar.
A pista é um circuito de ocasiões, as que se aproveitam, as que se dispensam e as que, simplesmente, são o que são e valem o que valem. Estou deliciada, em parte pelas histórias e segredos que se perdem ali, como pelos meus amigos de antes, excepto um, tu, o outro, o que não me serve para nada e que teima em querer marcar alguma espécie de território roçando-se em mim em todas as oportunidades. Não tarda estás a mijar para cima de mim para afirmares que eu tenho dono. Foda-se, se há coisa que detesto é isto, ir a uma discoteca, querer dançar e ter alguém encostado a mim, tu então, estás lá naquele ponto, quando só me apetece é abrir-te a cabeça com uma garrafa para ver se te enxergas. E a maneira como te abanas, como o pescoço projecta movimentos na cabeça de macho esfomeado e javardão, epa, desampara-me a loja.
Dou-lhe um berro.
*baza daqui fdx!*
Volto a ouvir aquelas notas.
Uma, duas, três, os pés esmorecem, deixam-se ir, apago as luzes em mim por instantes, o acordar só acontece quando quisermos, ou quando a música acaba, que é o que este final algo abrupto me diz. Só ouço agora o som dos últimos copos, das últimas bebidas que se pedem quando uma casa tem pressa de fechar e os empregados começam a responder-nos de outra maneira. Decido abrir os olhos, finalmente, observar um pouco mais atentamente tudo à minha volta, aquelas cadeiras, aqueles sofás, tu, o desconhecido, de regresso ao mesmo cantinho onde te vi quando entrei. Quase sem expressão, vejo em ti um sorriso pequeno e cúmplice, sem nomes, sem trocas de números de telefone, incógnitas e novelos que não pretendem ser mais do que isso. Despeço-me do porteiro simpático e volto a meter os pés nas ruas que me conhecem melhor do que ninguém. Já é novamente de manhã, adoro."
Nuno Almeida, Ecos de Gravidade, 2010
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