"Continuas a tentar ganhar tempo, a pensar que a tua oportunidade e sonhos virão ter contigo só porque sim, na ilusão dos esconderijos dos teus bolsos, onde decides guardar não só as tuas mãos quando sais à rua, mas também os papéis que enrolas com minúcia e onde escreves a cada dia o que te vai na cabeça e o que desejas para a tua vida.
Sentada no bar da esquina de uma rua estreita, bebes o teu café com um sorver delicado, entre as pausas para formares ondas castanhas com os círculos da colher que por vezes deixas na boca, presa entre os dentes brancos e os lábios roxos pelo frio. Olhas em volta e tudo te parece estranho e alienígena, como se as mesas fossem buracos negros que engolem as outras faces e o chão ladrilhado um escape onde te podes esconder quando olhas fixamente para ele. É como se uma porta se abrisse sempre que os teus olhos estão abertos e arriscam ver algo mais que o vazio.
O teu casaco escuro, de imitação de lã, cai sobre as costas da cadeira, sem que notes a manga direita a roçar no chão e a descrever movimentos suaves e danças cronometradas pelo abrir e fechar da porta de entrada, das pessoas que entram e saem incógnitas. Se o desejares, ela pode deixar de ser tua, se o quiseres, ela pode deixar-te nua, e se pensares muito nisso, ela pode desaparecer e deixar-te à margem dos enigmas que te fazem vaguear sem destino, entrando nos estabelecimentos onde sintas que as cadeiras podem com o teu peso frágil e que sejam baixas o suficiente para que não consigas ver o teu reflexo nos espelhos do balcão.
34 minutos exactos é o tempo que demoras de cada vez que estás dentro de ti, a partir daí já consegues ver não só os outros, mas também delinear formas, contextos e sentir o peso nos teus bolsos das palavras que escreveste. “um dia quero alcançar as estrelas”, pode-se ler num dos papéis enrugados, “gostava de me sentir feliz”, “a paz é o alimento dos fracos e de quem evita a fúria das paixões e devaneios”, “não faço ideia de quem és e sei que não te irei ver mais nenhuma vez, mas adorei a tua cintura”, “comprar queijo, ovos e cebolas”…
Com as pedras da calçada ao teu lado, mostras formas e um esboço do teu estado de espírito, seguindo o teu caminho por mais outra rua, altura em que decido fechar o caderno por hoje, deixando-te desaparecer das folhas e da ponta do lápis por afiar, jogando-te nos abismos de mim."
Nuno Almeida, Retratos Incomuns, 2008
Sentada no bar da esquina de uma rua estreita, bebes o teu café com um sorver delicado, entre as pausas para formares ondas castanhas com os círculos da colher que por vezes deixas na boca, presa entre os dentes brancos e os lábios roxos pelo frio. Olhas em volta e tudo te parece estranho e alienígena, como se as mesas fossem buracos negros que engolem as outras faces e o chão ladrilhado um escape onde te podes esconder quando olhas fixamente para ele. É como se uma porta se abrisse sempre que os teus olhos estão abertos e arriscam ver algo mais que o vazio.
O teu casaco escuro, de imitação de lã, cai sobre as costas da cadeira, sem que notes a manga direita a roçar no chão e a descrever movimentos suaves e danças cronometradas pelo abrir e fechar da porta de entrada, das pessoas que entram e saem incógnitas. Se o desejares, ela pode deixar de ser tua, se o quiseres, ela pode deixar-te nua, e se pensares muito nisso, ela pode desaparecer e deixar-te à margem dos enigmas que te fazem vaguear sem destino, entrando nos estabelecimentos onde sintas que as cadeiras podem com o teu peso frágil e que sejam baixas o suficiente para que não consigas ver o teu reflexo nos espelhos do balcão.
34 minutos exactos é o tempo que demoras de cada vez que estás dentro de ti, a partir daí já consegues ver não só os outros, mas também delinear formas, contextos e sentir o peso nos teus bolsos das palavras que escreveste. “um dia quero alcançar as estrelas”, pode-se ler num dos papéis enrugados, “gostava de me sentir feliz”, “a paz é o alimento dos fracos e de quem evita a fúria das paixões e devaneios”, “não faço ideia de quem és e sei que não te irei ver mais nenhuma vez, mas adorei a tua cintura”, “comprar queijo, ovos e cebolas”…
Com as pedras da calçada ao teu lado, mostras formas e um esboço do teu estado de espírito, seguindo o teu caminho por mais outra rua, altura em que decido fechar o caderno por hoje, deixando-te desaparecer das folhas e da ponta do lápis por afiar, jogando-te nos abismos de mim."
Nuno Almeida, Retratos Incomuns, 2008
6 comentar
Click here for comentar(...) sem palavras..
ReplyBeeeeeeeeeeeem.. que dizer acerca que acabei de ler? Não sei.
Está tudo tão perfeitamente descrito que sinto vontade de entrar para o lado de lá do ecrâ para poder ir ao encontro dessa pessoa tão vulgar que por ser tão vulgar torna-se tão diferente.
É curiosa essa capacidade que tens em conseguir transformar uma imagem tão simples em algo tão mais que isso, tipo, o casaco que roça no chão de repente deixa de ser um simples casaco que roça no chão para se transformar em algo mais do que isso??
Muito bem.. Gostei bastante.
**
thx mais uma vez. :)
ReplyOntem fiquei a olhar para o texto umas vezes após o escrever e gostei do resultado, dando-me uma sensação de nova fase em vista, o que já tinha acontecido em parte na colaboração em curso com a Lúcia.
Veremos se isto continua. :)
Espero que continue porque aqui deste lado é sempre bom acompanhar estas tuas viagens. :)
Reply**
:)
Reply:P Vamos ver, sim...
ReplySabes, há palavras que voam e não voltam a aterrar simplesmente porque perderam o seu significado e o seu tempo preenchendo abismos. :)
Este texto é mais um que foi escrito nas hmm, mesmas sessões em que escrevo textos para a nossa colaboração. :p
ReplyO que falas é bem verdade. Nestes dias que ando em arrumações em casa tenho-me deparado com diversos apontamentos e textos de anos atrás e tem a sua piada olhar para essas palavras agora. :)
ConversionConversion EmoticonEmoticon