Presas e Caçadores

"Argh, que hoje acordei tão confusa. Não encontro os sapatos que quero, não sei o que hei-de vestir, tomar ou fazer até logo à noite, quando a lua me der as boas vindas e me autorizar a viver. Estou uma mistura de pilha de nervos com polvorosa, com as energias ao máximo a fluírem-me por todos os poros e mais alguns, numa cadência não ritmada que dá cabo de mim, em que só me apetece ir tocar-me ali um pouco antes de sair de casa ou ainda rasgo as roupas a alguém pelo caminho.

Existem vários tipos de provocação e sei que sou muito boa nisso, e boa já agora, mas isto tudo é uma arte de subterfúgios que tem de ser bem oleada. A fronteira entre mostrar a barriga, cintura e piercing que trato com muito cuidado e uma parte dos boxers, ou tanga, já que ainda não decidi, é muito ténue, tal como o ir charmosa, sensual e aliciante, ou parecer simplesmente uma oferecida, descuidada e pronta a encostar alguém, ou ser encostada. Uma pitada de mistério nunca fez mal, por isso pode ser que até vá de camisa, quem sabe com uma gravata também, numa mistura de secretária pervertida com um ar de quem não sabemos muito bem para que lado é que dá. E sinceramente, na hora, há que aproveitarmos a beleza da natureza, onde cada lado tem os seus aliciantes que merecem ser aproveitados ao máximo, sob pena de estarmos a perder uma parte significante de conhecimento. E calções, vestidinho ou mini-saia? Mas porque é que tudo tem de ser tão complicado? Porque não não não, isso de vestir qualquer coisa não pode ser, essa teoria não pega e os gajos são tudo menos cegos, apesar de o parecerem por vezes e de só falarem de carros e futebol. Quer dizer, para esses se calhar qualquer petisco serve, mas reservo-me o direito de ser selectiva por muito maluca que possa ser.

Antes de sair da porta dou mais uma festinha à minha bichana, como sempre faço, dizendo-lhe com voz meiga e meio acriançada que a dona volta mais logo, ao que ela responde com um miar triste, misturado com uma certa curiosidade, olhando-me de alto a baixo. Sabe muito, e admiro como me percebe tão bem, afinal de contas os felinos têm um instinto de caça muito activo, e ela sabe bem que hoje é dia de encontrar presas.

Pastilha goela abaixo e olho uma última vez para trás, fechando o trinco de seguida, rodando a chave duas vezes depois. Neste tempo todo lá me decidi o que calçar, escolhendo umas sandálias sexy que, ao mesmo tempo, me deixam leve e muito à vontade a todos os níveis, incluindo para dançar, porque faço tenções de o fazer até de manhã. Juntando a isto trouxe uma camisola justa sem soutien por baixo, deixando adivinhar o que se esconde por detrás dela, com umas calças de ganga com aspecto rasgado e um casaquinho desportivo. Estou pronta, totalmente.

Cinco horas depois, sem me lembrar do que aconteceu em grande parte delas, acordo toda dorida e com a visão embaciada e distorcida, custando a delinear algo de concreto à minha frente. Sinto a pressão de um corpo sobre a minha barriga, e pouco tempo depois uma lâmina afiada que se encosta ao meu pescoço e garganta. São daquelas alturas típicas que ganhamos uma lucidez que nunca mais iremos recuperar visto ser tarde demais, já que tenho plena consciência que não irei acordar para ver o dia seguinte, vindo-me apenas à mente a visão da minha gata, de quando me despedi dela horas antes, de como gostaria de lhe voltar a fazer mais umas festinhas, de passar os meus dedos pelo seu pêlo tão macio. É por isso que choro, que estas lágrimas caiem, e não pelo corte que sinto a desfazer-me a carótida e os mais diversos vasos e nervos, num impulso e puxão que me faz fechar os olhos e pensar que raio de maneira esta de adormecer.

Tudo se desfaz, sinto o corpo solto, sem força e a cabeça a tombar. O que irá ser da minha gata agora?"

Nuno Almeida, Lugares Comuns, 2008

Boomp3.com

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Sobre Nuno 'Azelpds' Almeida

Tem formação em multimédia, fotografia e jornalismo. Mas mais do que isso, tem mundos na cabeça e caleidoscópios de actividade criativa.

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