Crianças

"Neste dia dei por mim a acordar com o barulho de uma voz que expressava sons que não percebia. Quando abri a porta deparei-me com aquela figura à minha frente. Ela tinha os dedos finos e as suas mãos quebravam o ar com movimentos em forma de círculo, numa curiosidade natural para descortinar pormenores e tentar perceber o mundo que a rodeia de uma maneira que só as crianças são capazes.

Seguindo o meu instinto, peguei nela e envolvi-a nos meus braços quentes, tentando dar-lhe alguma calma, paz, conforto e segurança. Ela olhava para mim muito fixamente enquanto me tentava agarrar o cabelo com uma das mãos, que de tão minúsculas dificilmente conseguiriam agarrar mais que uns fios por breves minutos.

Nunca percebi muito bem onde, e quando, é que tudo começou e acabou, mas algumas vezes dou comigo a revisitar estes e outros passados, em que me embalo nestas memórias e tento perceber todo um processo que é impossível de ser desmitificado.

Ao trocar mais umas palavras com alguém, dou comigo a pensar novamente na criança, em como tudo muda rapidamente, no que temos de fazer, e ser, até conseguirmos encontrar o meio-termo, até podermos viver realmente e sentir que estamos a ser o que realmente somos.

Sacudo mais um pouco a água desta banheira e a face dela continua lá, no meio da distorção das ondas, reflectindo-se para mim, tal como em cada espelho que encontro, ou na maneira de pensar que fui conquistando ao longo dos anos.

Tenho de me tentar encontrar novamente penso, enquanto limpo o corpo com uma toalha algo rugosa, seguindo um movimento de cima para baixo, secando as gotas que escorrem da cabeça até aos pés, num processo que observado de fora poderia parecer sensual e provocante, ou simplesmente uma forma de contemplação ou distracção. Pouco depois deixo o meu corpo nu andar pela casa e seguir o seu caminho, sem preocupações, quer esteja alguém a ver-me ou não, pois já passei há muito essa fase de me importar com o que possam pensar sobre mim.

Acho que hoje vou até à praia um pouco, apanhar sol, brincar na areia e ver se me encontro só mais um pouquito. Quem sabe até construa um castelo, com uns muros a protege-lo, ou beba umas cervejas numa esplanada enquanto deito a cabeça e me deixo ir, fechando os olhos e adormecendo no aconchego dos meus próprios braços. Quem sabe brinque mais um pouco e solte uns passos de uma dança descoordenada, com os grãos a infiltrarem-se nos dedos dos meus pés quentes. Quem sabe realmente, quem sabe…, enquanto me deixo continuar a ser esta criança, menos traquina agora, mas com a mesma vontade de viver."

Nuno Almeida, Lugares Comuns, 2008

Boomp3.com

7 comentar

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Sofia
admin
30 agosto, 2008 01:16 ×

Gostei :)

A primeira parte só me faz lembrar:
http://br.youtube.com/watch?v=NmanYE7QY5A

depois até arrepia a coincidência: porque sim, fui à praia :) esta tarde, com direito a cervejas na esplanada e tudo, e enquanto escrevo e ouço ainda tenho grãos de areia entre os dedos dos pés que estranhamente estão quentes a esta hora da noite...

§

PS: porque é que o teu castelo tem muros a protegê-lo? humm, interpretação muito Freudiana aqui por estes lados, hehe ;)

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30 agosto, 2008 01:43 ×

Thx. :) E o que tu foste buscar, essa faixa dos Sonic Youth. Não é daquelas que eu me lembraria. :p

Hoje não fui à praia infelizmente, mas mais valia ter ido, tendo em conta os meus dias ultimamente (long story), mas depois de jantar dei um pulo muito breve ao Bairro para espairecer um pouco e dizer uns olás.

O meu castelo tem sempre muros, e algo me diz que com a idade mais vai ter. Demasiadas coisas que vão acontecendo com o tempo e que tornam impossível a queda dos mesmos, por muito mau que isso possa ser para outras pessoas. :)

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03 setembro, 2008 13:48 ×

Sim, também gostei.. está muito bonito.

**

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Lucia
admin
07 setembro, 2008 12:40 ×

A única coisa que tenho saudades de quando era criança era dos mundos que criava e do tempo que dispunha para cada um deles.

Um texto muito bonito. :)

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07 setembro, 2008 13:37 ×

Também me dão algumas saudades desses tempos e mundos, mas a idade traz outras muito curiosas, apesar do cliché que possa soar.

Não sei ainda bem a razão disso, mas este é dos textos que mais gostei pessoalmente dos que escrevi nos últimos tempos. Não sei, leio e releio e faz-me sorrir, é um pouco estranho. Tem um pouco a cena de estarmos na fase adulta e recordarmos algo de quando éramos crianças e da evolução que fomos tendo da nossa filosofia de vida e postura na mesma. Mas realmente nem sei, mas faz-me sorrir.

Obrigada. :)

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Lucia
admin
07 setembro, 2008 13:41 ×

Sim, também senti o mesmo ao lê-lo. :)

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