"Raios de luz, vidros partidos, vidas embaciadas, que se esquecem, que se recordam e que se confrontam, quando se encontram frente a frente em pequenos momentos de reflexão.
Já passaram vários anos, as marcas nos braços estão quase disfarçadas no total, chegando a altura de deixar de andar de casaco todos os dias como o vinha fazendo desde então, mesmo nos mais quentes do ano.
Existem segredos que não gostamos de revelar, exposições a evitar, confissões que só oferecemos a quem escolhemos e tu, meu amor, és um deles. Tu sabes bem o que escondo, mesmo que não saibas no final com o que podes contar verdadeiramente, mas o mistério faz-nos bem, oh tão bem!
Com o tempo começámos a adoptar esta postura de sorrisos matreiros e sinais marotos, um explorar de caminhos, um ver até onde poderíamos ir, e acabámos por ir longe, muito além do que esperávamos e do que sentíamos um pelo outro. Acabámos por sair de nós, dos nossos limites e por nos tornar amantes um do outro.
Temos o corpo cheio de marcas, e adoro, delicio-me em saber que por debaixo destas roupas está o nosso afecto e que hoje em dia temos o cuidado de não o mostrar em partes que fiquem expostas com frequência como face e braços. Umas palmadas, uns puxões de cabelo, fivela do cinto nas costas, lâminas na barriga, precisamos apenas é de ter cuidado com a exposição. Há que cuidar do que é nosso.
Houve momentos em que pensei que fosses fugir, como quando arranquei um pouco de pele para te dar a provar um pouco de mim, mas esticaste a língua sem hesitação, como um puto imberbe que recebe pela primeira vez a hóstia na igreja. Entreguei-me logo a ti, ali, nesse momento, ao sentir que finalmente me tinha encontrado.
Por vezes ainda gosto de olhar para os meus braços, para quando ainda fazia o amor sozinha, tentando descortinar um pouco de um passado excitante que agora me parece tão monótono e descuidado.
Olhando para a tesoura ao meu lado, sei que ainda sinto vontade de descomprimir, de soltar dores e tormentos, mas depois olho em frente e vejo-te, mais uma vez, sempre ali, com os olhos brilhantes, grandes, e fixos, que me miram intensamente. És capaz de me possuir só com um gesto, de me fazer estremecer e ferver o sangue com o pensamento, aquele que adivinho sempre que me vês. Corta à vontade e dá-te a mim.
Solto uma lágrima, que precede mais um chorar compulsivo, e fico a olhar para o vazio, para dentro de mim, para o meu reflexo na janela, enquanto procuro na noite a lua. Tremo, e penso, bastante. Olho para ti, desesperada, à beira do precipício, e murmuro-te umas palavras.
*Amo-te, mas já não sei quem sou*"
Nuno Almeida, Lugares Comuns, 2008
boomp3.com
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Já passaram vários anos, as marcas nos braços estão quase disfarçadas no total, chegando a altura de deixar de andar de casaco todos os dias como o vinha fazendo desde então, mesmo nos mais quentes do ano.
Existem segredos que não gostamos de revelar, exposições a evitar, confissões que só oferecemos a quem escolhemos e tu, meu amor, és um deles. Tu sabes bem o que escondo, mesmo que não saibas no final com o que podes contar verdadeiramente, mas o mistério faz-nos bem, oh tão bem!
Com o tempo começámos a adoptar esta postura de sorrisos matreiros e sinais marotos, um explorar de caminhos, um ver até onde poderíamos ir, e acabámos por ir longe, muito além do que esperávamos e do que sentíamos um pelo outro. Acabámos por sair de nós, dos nossos limites e por nos tornar amantes um do outro.
Temos o corpo cheio de marcas, e adoro, delicio-me em saber que por debaixo destas roupas está o nosso afecto e que hoje em dia temos o cuidado de não o mostrar em partes que fiquem expostas com frequência como face e braços. Umas palmadas, uns puxões de cabelo, fivela do cinto nas costas, lâminas na barriga, precisamos apenas é de ter cuidado com a exposição. Há que cuidar do que é nosso.
Houve momentos em que pensei que fosses fugir, como quando arranquei um pouco de pele para te dar a provar um pouco de mim, mas esticaste a língua sem hesitação, como um puto imberbe que recebe pela primeira vez a hóstia na igreja. Entreguei-me logo a ti, ali, nesse momento, ao sentir que finalmente me tinha encontrado.
Por vezes ainda gosto de olhar para os meus braços, para quando ainda fazia o amor sozinha, tentando descortinar um pouco de um passado excitante que agora me parece tão monótono e descuidado.
Olhando para a tesoura ao meu lado, sei que ainda sinto vontade de descomprimir, de soltar dores e tormentos, mas depois olho em frente e vejo-te, mais uma vez, sempre ali, com os olhos brilhantes, grandes, e fixos, que me miram intensamente. És capaz de me possuir só com um gesto, de me fazer estremecer e ferver o sangue com o pensamento, aquele que adivinho sempre que me vês. Corta à vontade e dá-te a mim.
Solto uma lágrima, que precede mais um chorar compulsivo, e fico a olhar para o vazio, para dentro de mim, para o meu reflexo na janela, enquanto procuro na noite a lua. Tremo, e penso, bastante. Olho para ti, desesperada, à beira do precipício, e murmuro-te umas palavras.
*Amo-te, mas já não sei quem sou*"
Nuno Almeida, Lugares Comuns, 2008
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4 comentar
Click here for comentarPois... ... . . isto anda violento anda, mas ainda assim não me magoou ao ler. :)
ReplyÉ um bocado difícil tentar perceber essa necessidade física 'diferente', que certas pessoas têm de dar e receber o sentimento que carregam no seu interior.
Só sentem o que sentem e só acreditam que se possa sentir 'algo' com dor.. é estranho..
Mas o teu texto retrata esse modo de estar de uma forma bem interessante.. a pessoa que mais fala, fala de forma tão calma e natural, que chega a fazer confusão.. mas afinal será que dói assim tanto? E será que vale a pena essa dor?.. :)
Não, não estou com vontade de experimentar, mas é um tema que dá que pensar. :)
['És capaz de me possuir só com um gesto, de me fazer estremecer e ferver o sangue com o pensamento, aquele que adivinho sempre que me vês. Corta à vontade e dá-te a mim.' - Uau! Tu és mesmo bom com as palavras!!!]
**
Por acaso, e pensando assim nisto da "violência", isto parece quase uma continuação do texto anterior. Weird...
ReplyA cena passa um pouco por essa tal naturalidade que falas, que acontece muito sempre que as pessoas estão de certa maneira numa relação, em que se entregam e se deixam ir. Estas entram por certos caminhos, outras por outros e por aí adiante. É um cliché, mas ya, o amor é tão irracional que tudo é possivel consoante os contextos. ;)
thx mais uma vez pelas palavras e elogio *blushes*
Alô!
ReplyFeliz por te ter de volta, a espera dos últimos dias deu para viajar para trás no tempo, nesta tua casa; li, ouvi, descobri, comparei... enfim, passeei por ti :)
"e dizer eu posso sorrir, e dizer eu posso fugir..." belo!
Mas hoje foram as palavras que me hipnotizaram; parágrafo após parágrafo, chegar ao fim e reler, passar do final para o meio, lendo aleatóriamente saltando de uns para outros... Diz-me: escreveste de uma vez só?
Depois de me perder por entre as palavras fico com a ideia de teres composto em alturas diferentes e "editado" depois, para este resultado final - crazy me - só me faltava agora pôr-me a teorizar sobre o teu processo de criação! Não ligues, é curiosidade apenas, e talvez alguma saudade de ler poesia forte e emotiva que me pusesse a pensar ;)
Emoção, sentimento, realidade, dor, sentidos figurados, imagens belas, sarcasmos, provocações... tudo isto passou por mim enquanto te lia... e ainda há o pormenor da lua!
...e o da frase final, forte, tão forte que dá vontade de responder!
Voltando ao início, estou feliz por estares de volta, e em alta!
§ ;)
PS: tb gostei de acompanhar o que li com os Static Icon, e finalizar com a Sétima, tipo cereja no topo do bolo. Smart!
heheh thx. :)
ReplyTenho estado um pouco "ausente" e pensativo ultimamente, o que até já é o normal em relação à última parte no fundo. Not sure, tou a precisar de mudanças, sinto isso, e de fazer algo mais.
Em relação ao texto ya, escrevi de uma vez só, mas noto várias vezes que eles parecem uma viagem meio alucinada em que se juntam x personalidades diferentes nas palavras todas, criando um certo caos que só atinge alguma lógica no final..., eventualmente. ;)
Eu próprio nunca sei como as coisas vão acabar. Surgem-me umas palavras ou frases na cabeça, e quando começo a mete-las no papel dá-se um clic que me leva a escrever do início ao fim, divagando e improvisando na hora, viajando totalmente fora de mim.
A início, ao reler estas palavras, senti o tal seguimento do texto anterior aparentemente, fora certas imagens fortes que saltaram logo de algumas frases, mas realmente com o tempo acho que dá para notar que este texto tem muitos dos tais sentidos figurados, fora o resto que descreveste.
Sim, são personagens que vivem uma relação meio peculiar, e uma delas tem na automutilação uma forma de escape, mas sinto que passando essa imagem ve-se algo por detrás dessas exaltações da dor. Algo provavelmente bem mais negro e angustiante até que possíveis imagens de violencia física, à mistura com a beleza da relação deles. Porque sim, existe ali uma empatia e cumplicidade só possível em certas ocasiões.
Quando escrevi a frase final, e reli depois o texto todo ao fazer post aqui, cheguei a essa parte e até me deu uma coisa cá dentro... Sério, um aperto no estomago hmm hmm...
E erm, acho que já estava a divagar novamente, tal o testamento. :p
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