É assim mesmo que as coisas são (parte II)

"A melancolia é um sentimento tão interessante. Tanto me faz sentir em baixo como imensamente feliz por estar vivo para poder sentir. Ela pode vir das mais variadas maneiras e formas, seja nos acordes de uma música que nos arrepia da cabeça aos pés, como olhando para ti, para nós, para o que já fomos e para o que nos espera de agora em diante.

Não quero que o tempo volte para trás, nem em forma de desejo sequer, apenas quero-te aqui comigo para juntos continuarmos a construir algo, mesmo que isso não seja o que idealizamos para a nossa vida. Saber aceitar o agora, a beleza que se revela à nossa frente todos os dias, foi algo que a vida me ensinou, algo que o meu amigo tempo me foi sussurrando aos ouvidos.

Por muitos sonhos que tenha, pois ainda os tenho, nenhum ultrapassa a sensação que me percorre o corpo, este interior, após todos estes anos de convívio, ao dar por mim a conhecer cada expressão tua. A forma como as tuas sobrancelhas se enrugam um pouquito quando tens dúvidas, o sorriso leve e envergonhado quando te dizem algo que gostas, as contracções quando te faço cócegas, a maneira como os pêlos dos teus braços se eriçam sempre que me encosto a ti e te digo algo de maneira quente e calma, beijando-te o pescoço de seguida.

Se a surpresa me fascina, saber com o que posso contar e segurança que isso acarreta sobrepõe-se a isso, porque sei que estás ali para mim, porque sei que se o nosso castelo se estiver a desmoronar nós estaremos lá para o voltar a construir de novo, mesmo que as paredes sejam diferentes e outros os materiais usados.

De manhã o acordar desde então passou a ser diferente, assim como a maneira da luz trespassar o quarto. Rotinas como o lavar dos dentes e o banho passaram a ter não só um gosto, como um significado totalmente novo e rico em imagens, sensações e aspectos que não fazíamos ideia. Já repararam na beleza de uma pessoa estar a lavar os dentes enquanto outra por trás se penteia na mesma casa de banho e olhando para o mesmo espelho? Não? Sim?

Sempre que nos despedimos para ir trabalhar, cada um para seu lado, isso traz consigo uma mistura de saudade imediata com felicidade, pelo menos se estivermos bem um com o outro, caso contrário o sabor amargo torna-se difícil de suportar, com tudo a transformar-se em ironia ao ponderar que estando bem ou mal, as horas de trabalho acabam sempre por custar a passar porque não estamos juntos.

Não saímos tanto hoje em dia, pelo menos separados é bem verdade, e há quem olhe para nós e veja isso com desdém e como uma certa forma de decadência, mas continuamos a estar lá na mesma, pelo menos para as pessoas que consideramos mesmo amigas, pois com conhecidas e vozes de maldizer, que tornam certos tipos de discursos à volta de casais como um hábito, podemos nós bem.

Cada noite e cada adormecer ganharam também uma outra dimensão, em que já não temos medo do escuro, em que as dúvidas que normalmente nos assaltam quando a luz começa a desaparecer perdem a força que tinham e já não nos arrastam para o abismo mas sim para perto da outra pessoa, em que nos aconchegamos a ela e a apertamos com muito carinho, metendo o nosso braço à volta dela.

Sim, vejo-me a terminar esta minha viagem por cá contigo, a envelhecermos juntos, e isso não é um sinal de acomodar ou inércia, mas sim que neste momento para mim és a tal, e é assim mesmo que as coisas são."

Nuno Almeida, Lugares Comuns, 2008

boomp3.com

7 comentar

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26 junho, 2008 15:43 ×

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

....

..

.

... que bonito Nuno..

Mesmo muito!!!

Chiça que isto está mesmo bonito! :)

Começou bem e acabou ainda melhor. :)

Lindo!!!
**

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26 junho, 2008 15:45 ×

:) Thx.

Pena o boomp3 estar com vipes por causa da música. ;)

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Lucia
admin
27 junho, 2008 17:44 ×

Bem bonito :) Tenho saudades de me sentir assim. Há que nos reinventarmo-nos e aceitar a beleza das coisas tal como elas são.

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27 junho, 2008 18:08 ×

Obrigada. :)

Em relação às saudades, hmm, já lá vai algum tempo também destes lados, em que existiram relações de x anos e em que ambas as pessoas se sentiam um pouco assim, pelo menos parecia-me na altura heheh. Em que depois da loucura surge uma certa estabilidade, amadurecimento e construção de algo. Mesmo tendo acabado depois, tem sempre o seu quê de bonito, ao mesmo tempo que é um reflexo natural, um olha, é assim a vida, ou um "é assim mesmo que as coisas são" noutro sentido, do tipo se funcionou funcionou, se não funcionou, não funcionou.

Mas continuo a manter a tal atitude positiva nestes e noutros campos, apesar da minha maneira de ser ultra insatisfeita.

Voltando ao texto, até eu próprio fiquei admirado com isto não ter descambado no final para alguma nóia mais negra, apesar de poder provocar algumas, como por exemplo essas tais questões das saudades quando pensamos na nossa vida actual.

Pena que estejas assim actualmente, mas melhores tempos virão. :) Isto se entendi bem a mensagem nas tuas palavras. ;)

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Sofia
admin
27 junho, 2008 23:40 ×

Alô,

Já tinha passado por cá ontem mas faltou-me o catalizador SOM. Parece quase magia... se ontem bloqueei ao ler, hoje ao ouvir e reler voam-me as teclas na ponta dos dedos... ;)

Excelente continuação esta (parte II) e se a outra espicaçou e deu que falar, esta então... nem te conto!

Tremendously BEAUTIFUL :)

Saudades, pois claro, tal como a Lúcia diz! Não há quem já tenha vivido o tipo de partilha que escreves e se a perdeu não queira o sentimento reinventado de volta. São as tais coisas universais dos teus 'Lugares Comuns'. Só que às tantas a mestria das tuas palavras e mensagens é tal que me leva a desconfiar: Dude, terás posto sensores espalhados por nós, coração e alma, e pelos nossos espaços??? Tipo sci-fi?

Acho que é nesse ponto que reside a tua ARTE, de saber descrever real e humanamente o vivido e de observar e captar nos outros histórias que depois se entrelaçam, misturam e se envolvem de modo a que já não se destrinça o que é teu, o que é meu ou de todos nós, e nas quais qqer um de nós se revê, senão por inteiro pelo menos em parte.

Mais uma vez identifico-me e sonho.

Mesmo com alguma tristeza que fica após as releituras, tristeza não, é mesmo melancolia, ao relembrar o que já foi. Mas que também já sarou. este txt não reabre feridas antigas, pelo contrário, exalta momentos bons que ajudaram a contruir quem se é.

Excelente! ;)

§

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28 junho, 2008 00:06 ×

Esta música deu-me cá um estalo cá dentro, voaram logo as palavras também. ;) Tipo, causa assim uma melancolia misturada com alegria que te arrepia o corpo todo.

Obrigada mais uma vez pelas palavras heheh. Arte hmm, eu vou limitando-me a escrever, mas hmm. thx. *_*

A cena do nome desta fase acho que realmente se encaixa bem, apesar de não ter andado a meter escutas nem sensores em casa de ninguém atenção. :p Não sei, comecei a ver, a reler as coisas, as palavras, e a sensação de familiaridade começou a tomar forma, do estilo, ya, retratos que podiam ser do dia-a-dia de um de "nós".

Fico deveras contente que esteja a conseguir transmitir isso para fora, para ti e outras pessoas, onde as coisas deixam de ser minhas para serem "nossas".

Sinto que neste texto existe por aqui algo entre eventuais saudades de certos tempos para quem já tenha vivido uma cena assim, como o aceitar isso e apreciar que não só uma relação e amor podem ser bonitas, como a vida em si, e que mesmo que certas cenas não resultem, já foi bastante bom termos podido vive-las e senti-las sequer. :)

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