De Santa Maria a Espargos: Literatura-Mundo em Cabo Verde


No meio da escuridão, a luz dos faróis do autocarro ilumina, na sua intensidade máxima, duas placas à beira da estrada. A de cima indica-nos a praia de Calheta Funda, logo abaixo temos a que nos informa da presença da praia de Calhetinha. Esboço um sorriso, tiro mais umas notas e, de imediato, vêm-me à memória as curtas viagens para visitar o meu pai em que, a caminho, nos rimos sempre que passamos pelas placas com o nome da localidade de Sarilhos Pequenos. São estas particularidades que tendem a construir a identidade de um local.


Andar nas estradas que percorrem a Ilha do Sal, em Cabo Verde, pode ser uma experiência tão particular como desoladora mediante aquilo a que estejamos habituados. Candeeiros nem vê-los e a iluminação nocturna rareia à parte a escultura ocasional, como a que está situada numa rotunda nos arredores do aeroporto. De dia destapamos os olhos e somos assolados por uma paisagem que mistura praias, deserto, montes vulcânicos e árvores vergadas, muitas árvores vergadas. O vento constante é uma das características da Ilha do Sal e tem esse efeito raro nas árvores, de as vergar na direcção do seu sopro. Não foram poucas as vezes em que me lembrei da nossa visita à Islândia, por muito que sejam experiências e paisagens distintas. Na Islândia, o todo, além da tipologia geográfica assaz própria e de uma beleza assoladora, sente-se como uma escolha consciente do país em interferir o mínimo possível na natureza. Na Ilha do Sal, a sensação é a de que muito do seu potencial está ainda por explorar, o que se reflecte também nas infraestruturas e respectiva paisagem.


A premissa deste nosso curto período na Ilha do Sal foi a primeira edição do Festival de Literatura-Mundo do Sal. Se a escolha de local, a princípio, parece estranha para tal evento, não só por algumas das características que mencionei acima, como também pelo seu foco no turismo, com vários resorts turísticos já presentes na ilha, depressa percebemos, de forma positiva, o carácter disruptivo/subversivo de trazer este evento até aqui. Dar visibilidade à ilha e ao próprio país através da literatura é um objectivo óbvio, como se viu pelas diversas reportagens efectuadas até ao momento (nacionais e portuguesas), mas é na população local que vislumbro a possibilidade de um maior impacto a curto/médio prazo e onde senti, em plenitude, o potencial deste festival.


Devido aos apoios, assim como por opção da própria organização, as actividades centraram-se, largamente, nas zonas circundantes das cidades de Santa Maria e de Espargos. O acesso a qualquer uma das iniciativas era gratuito, o que é fulcral num festival tão específico e permitiu que existisse uma maior afluência de público que, obviamente, revelou enorme curiosidade por algo deste género. E o que pudemos vislumbrar, em mais do que uma ocasião, foi fome de conhecimento, um interesse genuíno. Não estivemos, portanto, perante um evento literário fechado em si mesmo, para o umbigo ou para os pares, como infelizmente tanto acontece noutros casos. Até em momentos tão específicos como a mesa onde esteve presente a nossa Patrícia Infante da Câmara e com um pendor mais académico, por exemplo, onde se debateu em concreto o tema-chave do festival, a reacção foi de abertura. Diga-se que após o término dessa actividade a Patrícia se viu, inesperadamente, rodeada de microfones e câmaras para entrevistas, o que constituiu um momento algo insólito, a que se seguiram pessoas a interpelá-la com curiosidade sobre o tema, onde estudava e sobre o projecto de investigação de que faz parte, como foi o caso de um rapaz que estava a estudar numa área totalmente distinta, mais concretamente a área farmacêutica. E isto num país onde não parece existir uma livraria convencional pelo que nos relataram mas que, em contraste, tem vários escritores de qualidade. Sim, leram bem. A livraria que encontrámos na cidade de Espargos, por exemplo, era afinal uma papelaria apesar de ter um livro ou outro ocasional, o que parece ser a norma.


Há que salientar que a atmosfera particular deste festival começou logo à chegada ao aeroporto, onde fomos recebidos com as melodias de músicos locais. Vários destes momentos de rara beleza se repetiram noutras ocasiões do evento, como aconteceu, por exemplo, no final da visita guiada às Salinas de Pedra de Lume (Património Cultural Nacional de Cabo Verde e um dos grandes pólos de atracção da Ilha do Sal), onde fomos brindados com uma leitura espontânea de poemas por várias pessoas acompanhadas por música ao vivo. Belo, cândido, bastante genuíno como, também, mais uma vez, muito diferente de certos ambientes que já presenciámos em iniciativas relacionadas. O transporte inicial até ao espaço onde ficámos alojados ter ocorrido numa carrinha Toyota Hiace antiga que dizia “transporte escolar” é apenas outro pormenor delicioso que nos apanhou de surpresa. E assim fomos, ao encontro do breu das estradas.


Como poderão depreender, o balanço do festival é muito positivo, mas não era apenas nele que estava focado. Apesar do parco tempo de estadia (5 dias), conseguimos sentir um pouco da essência de um local que convida a um abrandar do pensamento, a um outro estilo de vida que procura a calma e não a urgência. O que dizer da população que apanha e arranja o peixe despreocupadamente no pontão da praia de Santa Maria, com crianças em redor a mergulhar constantemente com a felicidade de todos os sonhos do mundo estampados nos rostos? Ou das mulheres em Espargos que esperam na rua com serenidade, um bebé às costas e um festim de ímanes na cabeça o próximo turista? Ou das pessoas que trazem na mão pedras enormes de sal por tratar nas Salinas? Ou das crianças que comandam ritmos tribais com os seus tambores endiabrados numa noite perdida de fim-de-semana, contagiando a multidão a juntar-se numa dança hipnótica nas ruas de Santa Maria? É uma realidade diferente da nossa, um contacto com outra cultura que nos faz, inadvertidamente, reflectir.


Aproveito aqui a oportunidade para agradecer, uma vez mais, o convite que a organização nos fez, assim como toda a sua disponibilidade, generosidade e simpatia, em todos os momentos desta nossa odisseia, em especial ao Filinto Silva, à Márcia Souto, à Patrícia Santos Pinto e a José Luís Peixoto que, incansáveis, preparam já a próxima edição deste Festival de Literatura-Mundo do Sal. Até breve!