Mesa-de-cabeceira: Jean Genet, Anaïs Nin e Jean-Arthur Rimbaud

Jean Genet - O Condenado à Morte (trad. Aníbal Fernandes - Hiena Editora, 1986)

(...) “Diz-me que desgosto doido te faz explodir nos olhos esse desespero tão forte que uma dor bravia e desvairada aparece, apesar do gelo que choras, a enfeitar-te a boca redonda com um sorriso de luto? (...)”

(in O Condenado à Morte, p. 34)

Escrito em 1942, numa altura em que Jean Genet estava na prisão, O Condenado à Morte é o primeiro poema deste autor. Impresso às suas próprias custas, o livro apresenta-nos uma escrita crua, intensa e sexual, explorando o amor entre prisioneiros e a homossexualidade, temas malditos para a época e até nos dias correntes. O filósofo Jean-Paul Sartre chegou a dizer que Genet não escreve sobre o mal mas na condição do próprio mal, citação incluída na primeira parte deste livro, composta pelo texto “GENET” de Yukio Mishima, que serve de introdução ao universo da escrita de Jean Genet e do que nos reserva o longo poema que dá título ao livro.

Se os temas visados nos avisam que poderemos estar perante uma obra difícil ou fora da norma, depressa percebemos que a linguagem do autor extravasa essas características. Apesar de hermética por vezes, ou demasiado visual noutras, ela cativa porque nos fala de impulsos familiares que atravessam a barreira do género mesmo que corra o risco de o resultado resvalar para a vulgaridade em mais do que uma ocasião.

"(...) As manhãs solenes, o rum, o cigarro... As sombras do tabaco, do cárcere e dos marinheiros vêm visitar-me a cela por onde me arrasta e estreita um espectro de assassino com a braguilha cheia.

A canção que atravessa um mundo tenebroso é o grito de um rufia chegado com a tua música, é o canto de um enforcado que enrijeceu como um pau. É o apelo mágico de um ladrão que se apaixonou.

O adormecido com dezasseis anos atrai bóias que nenhum marinheiro lança ao adormecido que enlouqueceu. A criança dorme direita, colada à parede. O outro enrolado nas pernas que encolheu. (...)"


(in O Condenado à Morte, p. 38)

Retrato alucinante de um momento limite na vida do autor, da vertigem extrema do abismo, este longo poema tanto se apresenta perverso e violento, como belo e eloquente, dilui expectativas. Dedicado a Maurice Pilorge, um jovem assassino que foi guilhotinado quando tinha apenas 20 anos e amigo de Genet, O Condenado à Morte foi uma das razões para o culto que cheguei a prestar à editora Hiena devido às suas opções editoriais diferentes, arriscadas e muito específicas, assim como pela vertente estética.

Para adquirirem o livro, nada como tentarem a sorte em alfarrabistas ou em páginas online com um foco em leilões como o OLX e o Coisas, por exemplo.

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Anaïs Nin - A Casa do Incesto (trad. Isabel Hub Faria - Assírio & Alvim, 1993)

"Na manhã em que me levantei para começar este livro tossi. Algo estava a sair-me da garganta, a estrangular-me. Rasguei o cordão que o retinha e arranquei-o. Voltei para a cama e disse: Acabo de cuspir o coração. (...)"

(in A Casa do Incesto, p. 9)

O começo deste livro é premonitório da urgência que se segue, do ritmo fantástico a que as palavras se movem nas páginas, da necessidade de escrever para expurgar demónios, ou da necessidade de escrever, simplesmente. Este é, também, um livro que ainda hoje considero importante no meu percurso. Relatada num invólucro prosaico poético de uma beleza ímpar, a história foca-se em Sabina, personagem que será familiar para quem conhece outras obras desta escritora visto que aparece em várias. As metáforas abundam e rapidamente nos vemos envolvidos num ambiente surreal e excessivo que ameaça perder-nos pelo caminho, nesta pressa de viver, mas o ritmo não abranda e envolve-nos, presos no feitiço deste livro que não espera por nós.

"(...) Debruça-te sobre mim na cabeceira da minha demência e depois deixa-me de pé sem muletas.

Sou uma mulher louca a quem as casas piscam o olho e oferecem a hospitalidade dos seus ventres. (...)"


(in A Casa do Incesto, p. 35)

Poderíamos dizer que algumas das características da escrita de Anaïs Nin são estas, a forma como ela nos prende, como tudo flui, as frases que ficam na cabeça, ou os ambientes, marcadamente femininos. E, ao contrário de muitas obras que me passaram pelas mãos ao longo dos anos, em que hoje as sinto apenas como uma etapa natural que ajudou a moldar o amadurecimento do meu gosto pessoal e pouco mais, quase meio século depois A Casa do Incesto parece-me agora ainda mais pertinente. Tão sensual como selvagem e onírico, este livro está longe de ser uma leitura fácil. A escrita, em estado cru, pende não raras vezes para o indecifrável e pede pausas para ser absorvida, para que deixemos a imaginação trabalhar.

"(...) Na casa do incesto existia um quarto que ninguém conseguia encontrar, um quarto sem janela, fortaleza dos seus amores, um quarto sem janela onde o espírito e o sangue se misturavam numa união sem orgasmo e sem raízes como a dos peixes. Numa promiscuidade de olhares e de palavras, encontrando-se como faíscas no espaço. Choque entre semelhantes, espalhando o seu odor de tamariz e areia, de conchas em decomposição e algas moribundas, amor-tinta de polvo, festim de venenos. (...)"

(in A Casa do Incesto, p. 48)

Encontrar este livro hoje em dia pode não ser tarefa fácil. Como tal, podem tentar em alfarrabistas ou em páginas na internet com um foco em leilões como o Coisas ou o OLX, por exemplo.

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Jean-Arthur Rimbaud - Iluminações / Uma Cerveja no Inferno (trad. Mário Cesariny - Assírio & Alvim, 1989)

"Para Helena se conjuraram as seivas ornamentais nas sombras virgens e as claridades impassíveis do silêncio astral. O ardor do estio foi confiado a aves mudas e a indolência requerida a uma barca de lutos sem preço por angras de amores mortos e de perfumes esparsos.
— Depois do momento do canto dos lenhadores rumor de torrente sob a ruína dos bosques, dos chocalhos do gado ecoando nos vales; e dos gritos na estepe.
Para a infância de Helena tremeram as peliças e as sombras, — e o peito dos pobres, e as lendas do céu.
E seus olhos e danças ainda superiores às cintilações preciosas, às influências frias, ao prazer do cenário e da hora únicos."


(in Fairy, Iluminações, p. 85)

As folhas amareladas pelo passar dos anos, parte delas já soltas, desprendidas do miolo. Este livro já sofreu muito. Para um adolescente, uma obra como esta assumia na altura uma importância exacerbada. Actualmente, nem tanto.

Este é um caso que poderá ser familiar, de um livro que se lê intensamente quando somos mais novos, mas que depois o deixamos na prateleira na sua condição de referência eterna da nossa juventude à medida que vamos descobrindo outras paixões com a idade. Algo desequilibrado, ou uma boa parte do livro não fosse constituído por poemas em prosa que formam um conjunto incompleto e diverso quanto aos temas abordados (Iluminações), consigo mesmo assim encontrar muitos apontamentos, momentos e textos que ainda aprecio. Razão mais do que suficiente para ter decidido recuperá-lo por breves instantes.

"(...) Sou um efémero e não excessivamente descontente cidadão duma metrópole que julgam moderna porque foi evitada toda a estereotipia no mobiliário e na fachada das casas, como no plano geral da cidade. Aqui não ficou rasto de nenhum monumento de superstição. A moral e a língua enfim reduzidas à sua expressão mais simples! Estes milhões de pessoas que não têm qualquer necessidade de se conhecerem, levam com tal paralelismo e educação, a profissão e a velhice, que o seu tempo de vida deve ser muitas vezes inferior àquele que uma estatística louca encontrou para os povos do continente. Tal como, desde a minha janela, vejo novos fantasmas deslizando pelo espesso e contínuo fumo de carvão, - nossa sombra campestre, nossa noite de estio! - novas Erínias deante do cottage que é toda a minha pátria e todo o afecto, já que tudo aqui é igual a si mesmo, - uma Morte sem lágrimas, nossa activa filha e criada, um Amor desesperado e um lindo Crime ganindo na lama da rua. (...)"

(in Cidade, Iluminações, p. 47)

Percebe-se a influência que este escritor exerceu sobre gerações posteriores, entre elas o grupo a que se decidiu chamar de surrealistas, que na versão portuguesa incluía, entre outros, o responsável pela tradução deste livro, Mário Cesariny, considerado o principal representante do surrealismo português. É uma obra marcante, com várias passagens que retemos na nossa memória.

"(...) Ao princípio, era apenas um exercício. Escrevia silêncios, anotava o inexprimível. Captava vertigens. (...)"

(in Delírios I - Virgem doida (o esposo infernal), Uma Cerveja no Inferno, p. 149)

Para não variar, este é mais um livro que pode ser complicado de encontrar actualmente sem recorrerem às procuras em alfarrabistas ou em páginas na internet com um foco em leilões como o Coisas.