Transferência de responsabilidades: o eu digital

Ausência. Períodos de reflexão. Para quem ainda se interessa talvez tenha notado o meu quase desaparecimento desta aldeia digital em todas as frentes. Algumas razões e pistas encontram-se em publicações deste blogue, mas devemos ser sinceros connosco próprios. São muitos anos disto, todo(a)s estamos mais velho(a)s, o dia-a-dia, mudanças de vida, o tempo aperta, estrangulação de um país, das pessoas dentro de uma sociedade capitalista selvagem a empurrar-nos para a ansiedade constante. É normal não existir cabeça para grandes partilhas, vontade ou capacidade de resistir a esta avalanche. Tudo parece deixar de fazer sentido.

Vem isto a propósito do estado do mundo, perdoem-me o cliché, com destaque para as recentes movimentações e notícias oriundas dos Estados Unidos após a eleição do segundo mandato de Trump. Alicerçadas nos milionários ligados ao campo tecnológico, com ramificações várias ligadas a dependências e consumismos criadas por nós, criaturas humanas, perdem-se direitos e promovem-se decisões bizarras a uma velocidade nunca vista. E isto com o apoio de várias companhias familiares a marcar presença na cerimónia de inauguração, assim como apoios monetários consideráveis e acatando ordens sem pestanejar. Marcas automóveis como a Tesla e Toyota, gigantes como a Microsoft, redes sociais do grupo Meta (Facebook, Instagram, Reels, What's App, Threads, Messenger, Oculus VR), lojas online como a Amazon ou empresas como a Alphabet (antiga Google + Youtube, Android, Gmail, Blogger, Calendar, Maps, Drive, Docs, Analytics, etc.) com aplicações usadas diariamente por nós. Até este blogue lhes pertence. Não há inocência de parte a parte, escolhemos as ferramentas. E batalhas.

As reacções tendem a variar entre o cinismo, encolher de ombros, debater alternativas, apagar contas e perfis, criar outras em redes diferentes, boicote de compras de determinados produtos ou websites, com outras a seguir o mote de tentar resistir por dentro. Nenhuma é a certa ou a errada. Isso não existe.

Ao longo dos anos culpámos os algoritmos pelo nosso abandono. Deixámos de publicar ou migrámos para redes onde pensar e escrever não é relevante ou incentivado, esquecemos a realidade. Os extremismos começaram a tomar força gradualmente. Em nenhum momento questionámos o nosso papel.

Rede social. Pensemos um pouco nesta designação. Elas dependem e funcionam com a nossa interacção. Se deixamos de partilhar, comentar ou reagir, deixamos de ver e receber na mesma moeda. Isto parece básico e é. Regressemos um pouco ao início deste texto. Estamos mais velhos, passaram muitos anos, sim, essa parte. Não atiremos a culpa pelo estado das coisas apenas para os outros e factores externos. A ruína tem também a nossa mão. As pessoas mudam, é natural. Abandonámos as redes, a partilha, deixámos o mundo digital fluir a seu bel-prazer, desligámos a corrente, não percebendo como ele se fundia com o mundo real. Perdemos também a ideia de foco. Cada rede tem um, potenciando o complementar de várias abordagens e conteúdos diferentes, mas até isso esquecemos.

Em apenas três semanas a loucura parece tomar conta dos nossos dias, transformada no novo normal após as referidas eleições. E nós? Durante esta última semana uma reacção particular tem sido notória em certas redes, com a Bluesky e Facebook na linha da frente. Perfis com parcas publicações nos últimos tempos voltaram a partilhar conteúdos. Notícias, eventos, documentários, música, fotografia, literatura, arte. Vontade de partilha, de fuga, de sentir e perceber a existência de alternativas, de pequenas comunidades com o objectivo comum de a realidade não ser apenas esta nefasta de colocar pessoas umas contra as outras. Estará esta movimentação para durar? Impossível de saber. Não romantizemos os instantes.

Sem promessas, do meu lado vou tentar fazer a minha parte. Partilhar mais. Aqui, ou nas várias redes.

PS: Para ajudar quem ainda usa o Facebook, deixo aqui a dica de uma ferramenta disponível no formato extensão para os navegadores da internet caso não a conheçam. Chamada F.B. Purity, uso-a há anos para filtrar o conteúdo e manter a rede com um aspecto sóbrio e minimalista. Tipo de publicações, publicidades, colunas, notificações... Permite até visualizar tudo como há uns anos, ou semelhante, por ordem de quando as publicações são feitas, por amigos, etc.