Mesa-de-cabeceira: Mark Twain, Carlos de Oliveira e Svetlana Alexievich

Mark Twain - Um Candidato Idóneo (trad. Madalena Caramona - Antígona, 2017)

“Admito desde já que, no Inverno de 1850, persegui o meu avô reumático e o forcei a subir a uma árvore. Ele era velho e não tinha muita experiência em trepar às árvores, mas, com a brutalidade impiedosa que me é característica, corri com ele porta fora em camisa de dormir, e forcei-o a lançar-se a um ácer, onde passou a noite toda, comigo cá em baixo a disparar chumbada após chumbada contra as suas pernas. Fi-lo porque ele ressonava.”

(in "Um candidato à presidência" | Um Candidato Idóneo, pp. 23-24)











Sátira, fina ironia. O nome do escritor americano Mark Twain associa-se, normalmente, aos seus dois livros mais famosos, As Aventuras de Tom Sawyer (1876) e As Aventuras de Huckleberry Finn (1885), não a textos com um pendor corrosivo de teor subversivo como os que figuram neste volume editado pela Antígona. Twain, a par de outros autores (Margaret Atwood, Edgar Allan Poe, Anaïs Nin, Walt Whitman, Virginia Woolf...), acabaria por ser uma pequena inspiração para a minha iniciativa em 2016 de publicar dois livros da minha autoria. As Aventuras de Huckleberry Finn, por exemplo, acabaria por ser publicado pelo próprio autor através da editora que decidiu abrir em determinado momento da sua vida. Um Candidato Idóneo reúne pequenos ensaios, sátiras e discursos escritos entre 1868 e 1884, percebendo-se rapidamente como o conteúdo se mantém actual. A classe política é ridicularizada, exposta, várias vezes em conjunto com a jornalística que age em conluio com a primeira, ambas movidas por um interesse comum que não é o do povo ou o do Estado. Ao lermos o último texto, “Coerência”, a sensação de familiaridade chega a ser assustadora de tão equiparável ao que acontece nos dias de hoje. O mesmo se pode dizer do texto que abre o livro, “Um candidato à presidência”, de onde retirei o excerto que abre este artigo. Escrito em 1879, com um humor mordaz, nele Twain parodia a ideia de um candidato à presidência americana sem pudor em revelar os sórdidos detalhes sobre o seu passado e que promete ser o pior possível, ou nas palavras dele: “um homem que tem por base a depravação total e que se propõe ser demoníaco até ao fim”. Lembra-vos alguém?

"Esta atroz doutrina de obediência ao partido é perfeita para os políticos mais rasteiros; e é sem dúvida por isso que ela nos chegou emprestada – ou roubada – da monarquia. Dá-lhes carta branca para nos impingir candidatos em quem ninguém que se preze alguma vez votaria, isto caso se consiga compreender que a primeira e suprema lealdade a deve cada um à sua consciência, e não a um qualquer partido. Os marionetistas, os que fazem encher os comícios, sabem que não precisam de nomear o homem mais apto para cabeça-de-cartaz, pois têm a certeza de que o partido, sempre obediente, irá votar no que quer que lá esteja e se mexa, mesmo que nem se pareça de todo com uma pessoa. Sou levado a crer – sem dúvida alguma – que esta noção de coerência – enquanto submissão imutável ao partido – fez degradar a humanidade de toda uma nação – puxou-a para baixo e fê-la arrastar-se pela lama.”

(in "Coerência" | Um Candidato Idóneo, pp. 133-134)

Alguns dos textos que podem encontrar aqui partem da experiência activa na política de Twain como candidato, ou como apoiante de candidatos. O excerto anterior mostra, além da crítica pertinente ao funcionamento dos partidos e mentalidades, que nos devíamos reger pela nossa consciência e não por uma fé cega no partido. E foi assim que, apesar de ser apoiante convicto do Partido Republicano, apoiou candidatos Democratas em períodos da sua vida. É também assim que chegamos à frase que pode ser lida no busto que lhe é dedicado no Hall of Fame For Great Americans, em Nova Iorque: “A lealdade a opiniões petrificadas jamais quebrou uma grilheta nem libertou alma alguma neste mundo – nem nunca o fará.”

O livro conta com um prefácio de Manuel Portela, servindo de introdução aos temas focados, complementado com pequenas informações introdutórias antes de cada texto. Tendo em conta que parte da informação se repete entre as notas e o referido prefácio, por vezes fica a ideia de um excesso de zelo na demanda de informar o leitor mais distraído. A capa, com uma ilustração de Luís Henriques (ilustrador com um longo percurso ligado à edição literária), faz justiça à linha gráfica da editora e merece também ser salientada, tal como toda a atenção dedicada à origem desta tradução que se pode encontrar na ficha técnica. Não é por acaso que a Antígona, quase 40 anos depois, é das poucas editoras por cá a dar o justo valor e mérito a quem traduz, como se pode comprovar também na presença da autoria da tradução na capa deste livro e de muitos outros, por exemplo.

“(...) Fiz-lhe notar que a sua luta era demasiado dispersa. Deveria congregar mais os índios – juntá-los todos num local mais conveniente, onde houvesse provisões para ambos os lados, e depois iniciar um massacre total. Expliquei-lhe que, para um índio, não há nada tão persuasivo como um massacre total. Caso não pudesse autorizar o massacre, disse-lhe que a segunda melhor hipótese para tratar dos índios seria sabonete e instrução. Sabonete e instrução podem não ser tão imediatos como um massacre, mas são mais mortíferos a longo prazo: um índio semichacinado pode recuperar, mas se o instruirmos e lavarmos, está condenado mais cedo ou mais tarde. Corrói-se-lhe o âmago; desmoronam-se os alicerces do seu ser.”

(in "Dos factos que concernem à minha recente demissão" | Um Candidato Idóneo, pp. 68-69)

Um Candidato Idóneo complementa os títulos disponíveis em português de Mark Twain, mas principalmente o leque de obras deste autor, quase todas eclipsadas pelas já referidas no início deste artigo. Nesse sentido é uma proposta bastante diferente apesar de se sentir o toque muito próprio deste escritor. Ideal para ler em curtos espaços de tempo, é um título que antevê sorrisos devido ao humor intrínseco de certos textos, podendo inspirar, quem sabe, uma vontade de resistir e denunciar, de sair deste rumo negro para onde caminhamos ciclicamente onde a manipulação da imprensa, a inércia e a falta de escrúpulos de quem exerce cargos políticos ou com peso social, o tráfico de influências, entre outros, têm a sua dose de responsabilidade. Não se pense com isto que Um Candidato Idóneo é uma obra pesada. Pelo contrário, é até bastante leve, sendo esse um dos seus trunfos, a forma como a mensagem chega até nós. O livro pode ser adquirido directamente através da editora ou, se preferirem, na Wook, Fnac ou perguntando na vossa livraria preferida.

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Carlos de Oliveira - Finisterra: paisagem e povoamento (Círculo de Leitores, 2001)

"(...) Osso de baleia, textura de madeira pobre, exposta à água, à erosão, sem apodrecer: a luz, quando bate de frente nos veios foscos, desprende uma poalha cor de cinza, quase a reacender-se. A densidade calcária decresce tanto que podem ambos flutuar (a criança e o osso de baleia) sobre musgos biliosos, caules de grisandra, líquenes, doenças vagarosas.
   O revérbero entre as nuvens colhe-o de surpresa e extingue-se, mas chega para abrir uma fenda (irreparável) na memória. Então reproduz de cor a paisagem que se vê da janela, cria os seres primordiais, mistura verão e inverno, atenua a cegueira (o excesso) do sol incidindo sobre sílica, mica esmigalhada, vidro moído num almofariz (sabe-se lá), aumenta os grãos de areia até ao tamanho que parecem ter, de noite, quando o vento atira contra as vidraças as suas enormes pedradas. Nisto, a chuva expulsa-o do jardim. Pouco flutuou. (...)"


(in Finisterra: paisagem e povoamento, pp. 7-8)



Isto é maravilhoso. Publicado originalmente em 1978, Finisterra desafia catalogações. Derradeira e última obra de Carlos de Oliveira, este romance só viu a luz do dia após reescritas várias. A reescrita intensa fazia parte do processo deste escritor, a tal ponto que quando faleceu, em 1981, estava a trabalhar na reescrita do seu segundo romance, Alcateia (1944), não autorizando a sua reedição até que o processo de reescrita estivesse concluído, o que torna este livro quase impossível de encontrar. Regressando a Finisterra, estamos perante uma das maiores obras de literatura portuguesa do séc. XX, estatuto que não muda um milímetro revisitando-a agora. Em contraste, é um livro que está esgotadíssimo neste momento. A última edição da obra data de 2003 pela Assírio & Alvim, ficando a esperança de que a reeditem um dia.

A escrita que perpassa este livro é de uma beleza e detalhe assombrosos. Poderíamos dizer, até, que são versos escritos em prosa. As descrições, a atenção ao pormenor e a linguagem, imbuem a escrita de Finisterra de uma perfeição quase fotográfica. Para o leitor menos paciente e preparado, a quantidade de informação que o assola desde o primeiro capítulo dos 33 (todos curtos) que compõem o livro pode deixá-lo exausto. Esta é uma obra que requer disponibilidade total, silêncio, o tempo todo para si, sem concessões.

   "Encosta-se ao espaldar da cadeira, afasta-se, esfrega os joelhos um no outro, e cada movimento faz brilhar a fazenda do fato, gasta, embebida em goma. Envolve-o a luz de fósforo que vem do exterior e um fogo-fátuo pessoal, a acender-se, a apagar-se, no tecido lustroso:
   — Deixemo-nos de subterfúgios. Concepções do dever, há só uma. Aquilo que certa gente chama carapaça oficial (em vez de lhe chamar dignidade da função) custa anos e anos de paciência. Num calendário psicológico, custa séculos. Mal eles imaginam.
   Coberto de pirilampos; entre as palavras (articulando-as uma a uma), rangem as dobradiças; e contra os dentes, como o granizo nos telhados, estalam grânulos de saliva seca:
   — Se fizessem a mínima ideia, não recorriam a golpes baixos, ultrajes e calúnias. Que somos portadores da miséria, flagelos sociais levando fome e ruína a toda a parte, verdadeiras almas cancerosas. E assim por diante. Um chorrilho de injúrias (...)"


(in Finisterra: paisagem e povoamento, pp. 105-106)

Falar de narrativa aqui é redutor, o que contrasta com o género literário onde se enquadra esta obra. Poderia dizer que o livro narra a história de uma família, da casa onde ela vive e da paisagem em seu redor, mas isso está longe de ser o propósito da obra ou o seu conteúdo. O todo é uma visão alegórica, simbólica, abstracta, que por vezes nos remete para uma ideia de não-lugar, para uma representação da realidade que se processa através do olhar de personagens que carecem de nome ou identificação fácil. Há uma proposta latente de sentir e pensar a paisagem, o que nos rodeia, de nos expor a uma outra forma de ver o mundo. As próprias personagens exibem certos traços característicos que se revelam nada inocentes na representação do mundo/paisagem: aquela que privilegia a exactidão da tecnologia através da máquina fotográfica que usa para olhar vs a outra que prefere o poder da imaginação para esse efeito, ou ainda a que usa o desenho. As leituras que a obra oferece são múltiplas, não finitas, dependentes de cada leitor. Não se esgotam.

   “Grisandras esperam que chegue o vento (florestas antes da tempestade). Ao crepúsculo, surge a primeira aragem. Arrepia as plantas túmidas de leite; comprime os caules penugentos; espreme a seiva para as campânulas (carne de cogumelo). O tecido esponjoso incha e os poros, dilatados sob a pressão, ressumam um líquido pouco espesso (gotas de suor a despontar na pele): tensa e húmida, a cabeça da grisandra brilha. Por instantes, decai a aragem, sem deixar rasgões ou ferimentos no invólucro de seda. Mas renasce logo (vento poderoso, agora) e as rugas aglutinam-se numa só, em torno do caule sem folhas a protegê-lo: frémito que sobe de repente, intumescendo mais a campânula quase a rebentar. Durante a noite, mesmo sem vento, o metabolismo da grisandra (desencadeou-se o instinto de ejaculação) decide o resto: a planta goteja até de madrugada; depois, sob o toque da luz, explode num jacto que a esvazia e faz pender para o chão, exausta.”

(in Finisterra: paisagem e povoamento, pp. 35-36)

Finisterra é uma obra difícil, que não termina quando lemos as palavras do último capítulo. Fica-se a pensar na linguagem, fortemente poética, nas várias passagens de tirar o fôlego, nas hipóteses de significado que encerram estas páginas. Quarenta anos depois, é um livro carregado de mistérios, de segredos por descobrir, que não facilita. Adquiri-lo também não será fácil devido a estar esgotado no mercado como mencionei uns parágrafos antes. Posto isto, e enquanto ninguém se presta a fazer uma reedição, podem tentar em alfarrabistas ou em sites com um foco em leilões como o Coisas, o CustoJusto ou o OLX.

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Svetlana Alexievich - Vozes de Chernobyl (trad. Galina Mitrakhovich - Elsinore, 2016)

“(...) Estas pessoas trabalharam toda a vida na central. Muitas delas ainda vão para lá trabalhar, a central agora opera num sistema rotativo. Já ninguém vive naquele lugar, nunca vai viver. Têm doenças graves, diferentes graus de invalidez, mas não largam os empregos, têm medo sequer de pensar nisso. Não têm como viver sem o reator, a sua vida é o reator. Onde e quem precisará deles noutro lugar, agora? Morrem com frequência. Num instante. Morrem a andar: alguém caminha e cai, adormece e não acorda, leva flores à sua enfermeira e o coração para‑lhe. Está numa paragem de autocarro… As pessoas morrem, mas ninguém realmente lhes perguntou nada. Ninguém nos perguntou pelo que passámos. O que vimos... Ninguém quer ouvir falar da morte. Do que é assustador...
   Mas eu falei‑lhe do amor... Do quanto amei...”


(in Vozes de Chernobyl, pp. 43-44)




Literatura da realidade. Quando o prémio Nobel foi atribuído em 2015 à escritora bielorussa Svetlana Alexievich, os comentários de surpresa não se fizeram esperar. Como ousa a academia sueca premiar uma jornalista, terão questionado algumas vozes, confusas. Svetlana escreve não-ficção, um género com a sua tradição literária. A própria academia sueca atribuiu anteriormente o Nobel a outros autores nessa linha. Apesar de os métodos remeterem para investigações jornalísticas de fundo, a relação entre isso e esta escrita polifónica é ténue. Para escrever Vozes de Chernobyl foram precisos mais de dez anos a investigar e entrevistas a mais de cinco centenas de pessoas (uma boa parte entrevistada mais de vinte vezes). Desses testemunhos que transcreveu, a autora fez uma selecção e edição pessoal. E é aqui, na forma como o todo é seleccionado e estruturado, que reside a inovação, o método e o registo próprios de Svetlana. Tudo o que podemos ler nestas páginas são transcrições directas, encadeadas pela autora tematicamente. Crê Svetlana que a sua voz não é necessária, devendo permanecer nos bastidores. É por tudo isto que surpreende a qualidade literária do que temos à frente, a força destas vozes. A realidade inenarrável de quem sofreu na pele, na primeira pessoa, o desastre nuclear da central de Chernobyl que ocorreu em 1986. Este livro transporta-nos para lá.

   "Já não me separei dele... Acompanhei‑o até ao caixão… Embora me lembre não do caixão em si, mas de um grande saco de plástico… Aquele saco… Na morgue perguntaram: «Quer ver como é que o vestimos?» Quero! Vestiram‑no com uniforme de gala, puseram o quepe no peito. Não encontraram calçado para ele, porque as pernas tinham inchado. Tinha bombas em vez de pernas. Também tiveram de cortar o uniforme, porque não o conseguiram vestir, já não havia um corpo inteiro. Todo ele — uma ferida em sangue. Nos últimos dois dias no hospital… Levanto‑lhe o braço e o osso abana, dança, o tecido corporal desprendeu‑se dele. Pedacinhos dos pulmões e do fígado saíam‑lhe pela boca... Ele engasgava‑se com as próprias vísceras… Eu embrulhava a mão numa gaze e metia‑lha na boca, tirava aquilo tudo… É impossível contá‑lo! É impossível escrevê‑lo! E mesmo viver... Tudo nele era tão amado... Tão amado... Não havia calçado que se lhe pudesse enfiar. Puseram‑no descalço no caixão."

(in Vozes de Chernobyl, p. 38)

"Incómodo" não será, de todo, o termo certo para descrever o que sentimos ao ler estas páginas. É mais do que isso. A pele arrepia-se, ficamos nervosos, sentimos medo, um desconforto profundo, físico, emocional. Lágrimas podem ameaçar cair. A realidade abate-se no nosso peito. E o silêncio. O silêncio é a única resposta. Insistimos. Continuamos. Radiação após radiação, contaminados, um desastre interminável, próximo. Uma tristeza extrema apodera-se de nós, misturada com raiva. E questionamos. Temos de questionar. As narrativas manipuladas por quem exerce o poder, o seu desprezo pela vida humana, a nossa natureza, o nosso papel no mundo, a insignificância de tudo em comparação com estas vidas. Não há ânimo que resista. E que se dane o ânimo! Desengane-se pois quem olha para o subtítulo desta edição portuguesa e pensa que este livro é uma mera versão documental do que aconteceu com a central de Chernobyl. Estes relatos, ou monólogos, de quem viveu na hora os acontecimentos e dos que lidaram (e ainda lidam) com todas as consequências pós-tragédia, funcionam tanto como homenagem quanto um alerta e um convite à reflexão.

   “(...) Traziam-nos vísceras de animais domésticos e selvagens. Fazíamos o controlo do leite. Após os primeiros testes ficou claro que não recebíamos carne, mas resíduos radioativos. [...] Os pastores chegavam e partiam, as ordenhadoras iam lá só para a ordenha. As fábricas de lacticínios cumpriam os planos. Fizemos as medições. Não era leite, mas resíduos radioativos. Mais tarde utilizámos em palestras, como fonte de referência, leite em pó e latas de leite condensado e evaporado produzidos pela fábrica de lacticínios de Rogatchev. Mas naquele tempo estes produtos estavam à venda... Em todas as mercearias... Quando as pessoas liam nos rótulos que o leite era de Rogatchev e não o compravam, o produto acumulava-se. Depois, de repente, apareceram latas sem rótulos. Penso que não foi por não haver papel suficiente – as pessoas eram enganadas. Enganava-as o Estado. Todas as informações foram tornadas secretas... [...] Fartámo-nos de escrever memorandos. Sempre escrevemos... Mas anunciar os resultados em público… Perder o grau académico ou mesmo o cartão do Partido... [...] Mas não foi o medo… Não foi o medo que motivou, embora também houvesse medo, é claro… Mas sermos pessoas do nosso tempo, do nosso país soviético. Tínhamos fé no país, o problema está na fé. Na nossa fé...”

(in Vozes de Chernobyl, pp. 227-228)

A editora Elsinore, em poucos anos de existência, tem-se revelado como uma das mais estimulantes no actual mercado livreiro português. Não só as edições são cuidadas, várias delas apresentando um grafismo de excepção, como as apostas fogem ao óbvio. O destaque dado às traduções, com chamada de capa incluída, são também de salutar. Vozes de Chernobyl conta com um pequeno prefácio do jornalista e repórter Paulo Moura, que nos introduz à obra e a Svetlana Alexievich, salientando-se também as pequenas notas finais biográficas sobre os responsáveis pela tradução e revisão. São pormenores que complementam, que dão a devida importância a quem permitiu que este livro possa ser lido em português.

Vozes de Chernobyl é leitura obrigatória. Corrói-nos as entranhas, mata qualquer vestígio de inocência que ainda possa residir no nosso ser, mas é um livro obrigatório. Por vezes precisamos disso, de colapsar, de perder o sentido de orientação. Estas páginas conseguem-no. O livro pode ser ser encontrado e adquirido facilmente na Fnac, Wook, Almedina ou procurando noutra livraria da vossa preferência.