Na véspera da minha participação no 4º aniversário do Village Underground Lisboa através da Feira Morta, em conversas aqui em casa e com amigos, brincava que no dia seguinte poderia acontecer alguém perguntar-me se vendia versões digitais das minhas criações. Isto porque, actualmente, o objecto físico artístico parece ser um conceito exótico e sem utilidade aparente. Exagerando no tom, comentei como exemplo que num futuro próximo as pessoas vão continuar a comprar gira-discos por uma questão de moda como já acontece, mas com a diferença que ficarão admiradas quando alguém lhes disser que antigamente eles não serviam para decorar a casa mas sim para ouvir música. “Que cena!”, alguém dirá, em espanto por tal revelação apoteótica.
Numa altura em que se fazem petições e se elaboraram medidas para tentar lidar com a crise de vários sectores, entre eles do mercado livreiro, o passado Sábado ajudou a cimentar ainda mais a minha visão que tanto tem de pessimista como de realista. Livrarias, editoras pequenas e por aí adiante, não terão hipóteses de alcançar mais do que um mero nicho, uma magra fasquia de público que tornará insustentável a sua sobrevivência sem fontes de rendimento provenientes de outras actividades. Sim, tenho noção que tal já vai acontecendo. Daqui a uma geração ou duas, o público deixará de comprar, ou de se interessar em grande parte por objectos físicos como livros ou discos, entre outros. Podem baixar as rendas, os preços dos próprios materiais, o Estado apoiar, o que quiserem. Sem público interessado, um povo que, na sua maioria, padece de falta de educação cultural, desconhecendo e ignorando com orgulho as potencialidades de como a cultura pode transformar o ser humano para que a sua existência seja um pouco menos descartável, não se pode esperar que certas coisas sobrevivam. Entre elas os próprios espaços físicos, que passarão a funcionar apenas online devido à falta de clientes e de propósito. Adaptar ou morrer. A marcha já está há muito em andamento.
Ao contrário do que se possa pensar, estas palavras que escrevo não têm a intenção de criticar. São apenas uma constatação e, no contexto do evento referido, deram todo um simbolismo ao dia, a tal ponto que a pergunta no título do artigo passou a ser uma piada recorrente até ao término da feira. Antes de falar um pouco mais sobre isso, um pequeno contexto monetário. Quando participo em feiras, o item mais popular na banca são os postais com fotografias e textos da minha autoria. Individualmente, cobro 2€ por cada. Uma imperial, no Village, custava 3€. Obviamente, ninguém consegue competir com a arte da cerveja quente num copo de plástico pequeno.
Ao longo do dia, como tem acontecido noutras ocasiões, as pessoas que passavam pela banca mencionavam a qualidade do que estava exposto, trocávamos palavras várias. Outras pediam para me tirar uma fotografia, ocasionalmente filmavam. Raras as que adquiriam algo. Em determinado momento, muitas dessas conversas acabaram da mesma forma. “Tens Instagram?”. E a epifania ergueu-se na sombra da era digital. Os materiais, as criações, estavam ali expostos à sua frente, os elogios múltiplos, o efeito do objecto físico impossível de sentir ou ver num ecrã, mas no final surgia a pergunta milagrosa. O scroll infinito num ecrã táctil é afinal suficiente, os dedos a atribuírem dilúvios vertiginosos de gostos, a validarem algoritmos clicando em imagens giras que não obrigam a pensar. Mais caricato ainda, é percebermos pouco depois que a pergunta tem outro significado adicional. É a nova conversa de ocasião. É como falar do clima quando não se tem nada para dizer. Não pensem portanto que vão ter mais seguidores sequer (para quem liga a essas coisas) após tais interacções sociais. É uma pergunta que começou a surgir de forma discreta em eventos no ano passado onde participei e que encerra em si um vazio autómato que submerge as pessoas sem elas darem por isso. É uma banalidade diferente da que falava Hannah Arendt, mas com efeitos não menos perversos a médio prazo.
Este é um tempo em que as pessoas não se conseguem concentrar em nada, cujo foco de atenção dura segundos, as cabeças repletas de ruído e estímulos sensoriais. Na internet, a situação não melhora, ou não estivesse tudo intimamente ligado. O jornalismo é tendencioso, os órgãos de comunicação social movidos por interesses políticos e grupos económicos, as notícias falsas proliferam, as pessoas deixaram de questionar a informação que lhes é veiculada ou o que seja. Não se comenta, não se consegue ter uma conversa, não se lê mais do que três linhas, não se vê vídeo algum com mais de 30 segundos. Pressa de existir, pressa de nada. O objecto físico substituído gradualmente por licenças de utilização digital prisioneiras de plataformas com prazo de extinção anunciado, os artistas procurando o desespero da exposição virtual para tentar compensar a falta de comida na mesa ou de um tecto para viver. Lamento desiludir-vos se procuram aqui uma solução. Não há. Existe sim resistência, tentativas de funcionar ou pensar de forma alternativa, de adaptação clara a uma realidade que já não é de agora. Sou outro nicho.
E tu, tens Instagram?
Numa altura em que se fazem petições e se elaboraram medidas para tentar lidar com a crise de vários sectores, entre eles do mercado livreiro, o passado Sábado ajudou a cimentar ainda mais a minha visão que tanto tem de pessimista como de realista. Livrarias, editoras pequenas e por aí adiante, não terão hipóteses de alcançar mais do que um mero nicho, uma magra fasquia de público que tornará insustentável a sua sobrevivência sem fontes de rendimento provenientes de outras actividades. Sim, tenho noção que tal já vai acontecendo. Daqui a uma geração ou duas, o público deixará de comprar, ou de se interessar em grande parte por objectos físicos como livros ou discos, entre outros. Podem baixar as rendas, os preços dos próprios materiais, o Estado apoiar, o que quiserem. Sem público interessado, um povo que, na sua maioria, padece de falta de educação cultural, desconhecendo e ignorando com orgulho as potencialidades de como a cultura pode transformar o ser humano para que a sua existência seja um pouco menos descartável, não se pode esperar que certas coisas sobrevivam. Entre elas os próprios espaços físicos, que passarão a funcionar apenas online devido à falta de clientes e de propósito. Adaptar ou morrer. A marcha já está há muito em andamento.
Ao contrário do que se possa pensar, estas palavras que escrevo não têm a intenção de criticar. São apenas uma constatação e, no contexto do evento referido, deram todo um simbolismo ao dia, a tal ponto que a pergunta no título do artigo passou a ser uma piada recorrente até ao término da feira. Antes de falar um pouco mais sobre isso, um pequeno contexto monetário. Quando participo em feiras, o item mais popular na banca são os postais com fotografias e textos da minha autoria. Individualmente, cobro 2€ por cada. Uma imperial, no Village, custava 3€. Obviamente, ninguém consegue competir com a arte da cerveja quente num copo de plástico pequeno.
Ao longo do dia, como tem acontecido noutras ocasiões, as pessoas que passavam pela banca mencionavam a qualidade do que estava exposto, trocávamos palavras várias. Outras pediam para me tirar uma fotografia, ocasionalmente filmavam. Raras as que adquiriam algo. Em determinado momento, muitas dessas conversas acabaram da mesma forma. “Tens Instagram?”. E a epifania ergueu-se na sombra da era digital. Os materiais, as criações, estavam ali expostos à sua frente, os elogios múltiplos, o efeito do objecto físico impossível de sentir ou ver num ecrã, mas no final surgia a pergunta milagrosa. O scroll infinito num ecrã táctil é afinal suficiente, os dedos a atribuírem dilúvios vertiginosos de gostos, a validarem algoritmos clicando em imagens giras que não obrigam a pensar. Mais caricato ainda, é percebermos pouco depois que a pergunta tem outro significado adicional. É a nova conversa de ocasião. É como falar do clima quando não se tem nada para dizer. Não pensem portanto que vão ter mais seguidores sequer (para quem liga a essas coisas) após tais interacções sociais. É uma pergunta que começou a surgir de forma discreta em eventos no ano passado onde participei e que encerra em si um vazio autómato que submerge as pessoas sem elas darem por isso. É uma banalidade diferente da que falava Hannah Arendt, mas com efeitos não menos perversos a médio prazo.
Este é um tempo em que as pessoas não se conseguem concentrar em nada, cujo foco de atenção dura segundos, as cabeças repletas de ruído e estímulos sensoriais. Na internet, a situação não melhora, ou não estivesse tudo intimamente ligado. O jornalismo é tendencioso, os órgãos de comunicação social movidos por interesses políticos e grupos económicos, as notícias falsas proliferam, as pessoas deixaram de questionar a informação que lhes é veiculada ou o que seja. Não se comenta, não se consegue ter uma conversa, não se lê mais do que três linhas, não se vê vídeo algum com mais de 30 segundos. Pressa de existir, pressa de nada. O objecto físico substituído gradualmente por licenças de utilização digital prisioneiras de plataformas com prazo de extinção anunciado, os artistas procurando o desespero da exposição virtual para tentar compensar a falta de comida na mesa ou de um tecto para viver. Lamento desiludir-vos se procuram aqui uma solução. Não há. Existe sim resistência, tentativas de funcionar ou pensar de forma alternativa, de adaptação clara a uma realidade que já não é de agora. Sou outro nicho.
E tu, tens Instagram?
ConversionConversion EmoticonEmoticon