Herta Müller - O Rei Faz Vénia e Mata (trad. Helena Topa - Texto editores, 2011)
"(...) Eu conhecia, das visitas aos mortos, as unhas azuis, a cartilagem amarela de lóbulos esverdeados, onde as plantas já tinham cravado os dentes, começando o trabalho da decomposição, no meio do quarto mais bonito da casa; não esperavam pelo túmulo. Eu pensava, nas ruas daquela aldeia, entre as casas, fontes e árvores: isto aqui são as franjas do mundo, devíamos viver no tapete, que é de asfalto, e só na cidade. Não queria ser apanhada por aquela florescente galeria de curiosidades que desperdiçava todas as cores. Não queria pôr o meu corpo à disposição daquela canícula voraz, disfarçada de flores. O que eu queria era fugir das franjas para o tapete, onde o asfalto debaixo das solas é tão espesso que a morte não consegue subir da terra e insinuar-se pelos tornozelos. (...)"
(in Cada língua tem olhos diferentes | O Rei Faz Vénia e Mata, p. 14)
Galardoada em 2009 com o Prémio Nobel da Literatura, Herta Müller é uma escritora de dupla nacionalidade (romena e alemã) com um corpo de trabalho de contornos autobiográficos que descreve como poucos o medo, a violência e a opressão sofrida no regime ditatorial de Nicolae Ceaușescu, ou na ocupação Soviética da Roménia. Longe de serem meros relatos descritivos, o que os distingue é, entre outras coisas, a linguagem utilizada, fortemente poética e metafórica. Um discurso belo, elegante, mas também cru quando necessário, para nos falar do horror.
"(...) Eu tinha uma mão-cheia de amigos íntimos, líamos livros e falávamos sobre eles. Era a nossa ocupação principal, extrair coisas que líamos à medida da nossa vida. Podíamos ler a nossa miséria em livros científicos, formulada com objectividade, analisada com rigor, comentada com sobriedade. Podíamos reencontrar essa miséria em poemas e romances, na urgência da imagem poética. Ambos os modos de leitura davam firmeza, na medida em que confirmavam a nossa situação. Ajudavam a não ficarmos calados perante nós mesmos. Não havia nada que os livros pudessem mudar, dado que só nos mostravam como éramos quando não podíamos criar a felicidade. (...)"
(in A ilha fica dentro – a fronteira fica fora | O Rei Faz Vénia e Mata, pp. 154-155)
Um dos benefícios do referido prémio é a visibilidade que traz e, por conseguinte, a possibilidade de traduções de obras dos autores premiados para várias línguas. O Rei Faz Vénia e Mata (publicado originalmente em 2003) compila nove ensaios da autora, com alguns desses textos a terem origem em conferências. Não se pense com isto que estamos perante uma obra puramente teórica ou académica, como se associa normalmente ao ensaio. Espelhando uma tradição alemã, os textos são narrativos, literários e, no caso de Herta Müller, abrem-nos uma janela para o seu próprio processo criativo, as suas vivências e, ao mesmo tempo, incentivam-nos a pensar, a reflectir. Um dos assuntos abordados é o do peso que a linguagem pode ter na sociedade, como pode ser moldada, proibida ou reaprendida (em ditaduras particularmente), assim como certas palavras soam (e são) diferentes consoante a língua, o significado implícito alterando-se mediante a que se utiliza. Poderíamos extrapolar esta discussão para as próprias traduções de uma obra, que dependem substancialmente de quem a traduz e de onde origina (língua original ou de outra tradução). E no caso deste livro, referindo apenas o português, existe uma outra versão em português do Brasil, O Rei se Inclina e Mata, que é diferente a ponto de nos interrogarmos de qual será a mais correcta, com o dilema a surgir logo no título.
"(...) O vivido, como processo, está-se nas tintas para a escrita, não é compatível com palavras. Coisas que aconteceram verdadeiramente nunca podem ser captadas uma a uma por palavras. Para serem descritas, têm de ser recortadas de acordo com as palavras e completamente reinventadas. Ampliar, reduzir, simplificar, complexificar, mencionar, ultrapassar – uma táctica que segue os seus próprios caminhos e que tem o vivido apenas como pretexto. Arrastamos o vivido, ao escrever, para um ofício diferente. Experimentamos qual a palavra que é capaz do quê. Já não dia ou noite, aldeia ou cidade, o que impera é o substantivo e o verbo, frase subordinante e subordinada, cadência e sonoridade, verso e ritmo. O que aconteceu verdadeiramente insiste, à margem, e nós aplicamos-lhe um choque atrás do outro com as palavras. Quando já está irreconhecível, fica de novo no centro. Temos de demolir a presunção do vivido para escrever sobre ele, desviar-nos de todas as ruas verdadeiras para entrar numa inventada, porque só ela se pode assemelhar às verdadeiras. (...)"
(in Quando nos calamos, tornamo-nos incómodos – quando falamos, tornamo-nos ridículos | O Rei Faz Vénia e Mata, pp. 81-82)
O diálogo que a autora enceta consigo mesma e o que se pode denominar como texto literário tem o dom de nos fascinar e intrigar em igual medida. Ficamos divididos entre a abertura desarmante, as ideias e a beleza que perpassa de certas passagens. Um pensamento recorrente é o da dificuldade de se encontrar palavras para tudo, de existirem impossibilidades, de que a qualidade literária de um texto, segundo a autora, encontra-se quando ele estimula o leitor usando uma linguagem diferente da que ele reconhece, descartando a mera descrição de factos e ocorrências. E aqui, um dos exemplos citados por Herta Müller, curiosamente, é o do escritor português António Lobo Antunes.
O Rei Faz Vénia e Mata é um livro que nos ajuda a perceber melhor o universo desta escritora mas, mais do que isso, oferece-nos na primeira pessoa um olhar poético para o abismo, uma radiografia de situações limite desconhecidas para muitos de nós. A escrita, muito particular, sensível, confunde-nos constantemente, diluindo as fronteiras entre texto narrativo, literário, biográfico e teórico. Para quem estiver interessado, este livro ainda é passível de ser adquirido facilmente em livrarias ou lojas online especializadas.
--//--
Luiza Neto Jorge - A Lume (Assírio & Alvim, 1989)
"Nas cidades do sul
há violência e há excesso,
de semente.
Estalam os rios e foge a água.
O corpo, encortiçado, racha.
Lendas vêm de há séculos assoreando
as margens.
E quando à boca de um poço vamos
provar o nosso eco,
águas puras irrompem,
noutra língua."
(in A Lume, p. 45)
Disponibilidade para estar connosco próprios, em primeiro lugar, para depois nos permitirmos sair de nós. Ler poesia (e não só) é um prazer solitário, egoísta, que parte de um entendimento de que o texto à nossa frente nasce de uma linguagem diferente que abre portas do sentir e não, necessariamente, as que levam a um destino concreto e perceptível.
"Uma sombra encostava a pata
ao vidro da janela
Assim protegidos adormecíamos"
(in A Lume, p. 66)
Luiza Neto Jorge (1939–1989), é uma das vozes mais singulares da literatura portuguesa, tendo-se destacado na poesia e tradução. A Lume é um livro de poemas póstumo organizado pela autora antes da sua morte, com o manuscrito original a apresentar dificuldades várias por se encontrar repleto de emendas e rasuras, como se dá conta nas notas finais desta edição e a própria capa alude a esse processo de reconstrução. A memória do meu contacto com este livro é difusa. Tal como me aconteceu com alguns discos, que os adquiri há muitos anos por impulso, algo me chamou, um potencial indizível que só mais tarde poderia ser assimilado, sentido. O preço original, 1260 Escudos, ainda resiste escrito a lápis na página de abertura.
Nós, que medimos a morte,
não entramos de roldão desassossegando
o mundo. Alimentamo-nos de seres
menores
néons macios controlados
por ogres, bolas de sabão
que em silêncio estoiram.
E às jazidas do sémen, ao tenro veio da
madre
século após século retornamos.
(in A Lume, p. 15)
A intensidade é uma das características que nos impele a submergir nesta poesia em que o amor, a vida, a morte e o erotismo, entre outros, são temas recorrentes. O duelo entre o eu e o que fica por dizer tem o seu quê de hipnótico, como acontece em alguns dos poemas que integram a secção “Fragmentos” do livro, que faz jus ao título com as palavras a funcionarem como esconderijos, pequenos espaços de refúgio que fervem a imaginação.
"Perdida a face largada a pele
oco o osso curva a espinha
apela-se à grande concentração
São as primeiras letras
um vagido um balbucio de amor
não esperar mais escrevê-lo já
telefoná-lo
(a quanto o impulso)?"
(in A Lume, p. 65)
Imbuir-me de estranheza, vestir os silêncios entre cada pausa. Regressar a esta obra acarretou uma reconciliação com o passado, processo que tenho encetado gradualmente como tenho dado conta por aqui. Longe das preocupações adolescentes de um possível contágio, ler agora a poesia de Luiza Neto Jorge é saborear a unicidade da sua escrita com um sorriso. Sem grande surpresa, encontrar este livro, actualmente, pode revelar-se tarefa impossível. Como tal, podem tentar em alfarrabistas ou em páginas na internet com um foco em leilões como o Coisas, CustoJusto ou o OLX, por exemplo. Para quem estiver apenas interessado nos poemas contidos nesta recolha, a melhor alternativa é adquirir Poesia (1960-1989), edição da Assírio & Alvim que reúne toda a poesia de Luiza Neto Jorge.
--//--
Silvina Rodrigues Lopes- Literatura, Defesa do Atrito (Língua Morta, 3ª edição 2017)
"(...) Num mundo cuja organização económica provoca o embrutecimento de muitos e apenas permite o acesso de alguns ao uso da razão numa dimensão crítica capaz de recusar a identificação daquilo que é, do estado das coisas, com o natural ou o necessário, espera-se do intelectual a resistência aos mecanismos do embrutecimento, o que implica a resistência ao papel de garante da manutenção de um sistema que assenta naquela divisão, o qual, cientistas, professores, escritores e outros, são em maior ou menor grau chamados a representar. No entanto, isso já foi dito várias vezes, esta resistência dos intelectuais não justifica, de modo nenhum, a pretensão a serem “a consciência de todos”, bem pelo contrário, supõe o desejo de serem apenas uma voz entre outras, de acabarem com o tipo de distinção que os faz destacar-se. Para o poeta (o que até certo ponto é extensível ao criador de obras literárias), a exigência de anonimato coloca-se a um nível mais radical (...)"
(in A literatura como experiência (2002) | Literatura, Defesa do Atrito, pp. 34-35)
Silvina Rodrigues Lopes é professora catedrática em Teoria da Literatura na Universidade Nova de Lisboa. Juntamente com Manuel Gusmão, Helena Buescu e João Barrento, entre outros, simboliza uma geração que nos estimula a reflectir sobre a literatura (e não só) e o seu papel no mundo. Literatura, Defesa do Atrito (1ª edição 2003 - Edições Vendaval, 2ª edição 2012 - Chão da Feira), reúne 10 ensaios académicos que nos impelem a pensar sobre este assunto, que problematizam a noção de literatura, que provocam. Com as duas primeiras edições esgotadas há algum tempo, esta 3ª reedição a cargo da editora Língua Morta foi uma das melhores surpresas do ano transacto, mesmo para quem já tinha a versão digital da 2ª edição como é o meu caso, disponibilizada gratuitamente pela autora depois do livro esgotar.
"(...) A expansão do ensino da literatura e das artes só é importante se não se pretender equipará-la a qualquer ramo de conhecimento especializado: não se trata apenas de conhecimento, mas de iniciação, através do pensar, a uma dimensão da existência não vinculável a um círculo de competências e teorias. (...)"
(in A paradoxalidade do ensino da literatura (1999) | Literatura, Defesa do Atrito, p. 102)
Tendo em conta que alguns destes textos já têm entre 15 a 20 anos, não deixa de ser espantoso como continuam pertinentes nos dias de hoje, percebendo-se rapidamente o porquê desta nova reedição se atentarmos ao percurso da editora e postura pública da mesma.
"(...) Se quisermos resistir à confusão reinante, teremos que perceber que, entre os produtos que são produzidos e circulam segundo os desígnios da indústria da cultura, e uma ideia de literatura como forma artística, não há nada em comum para além de palavras impressas. É preciso impedir que a banalidade que aparece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade. (...)"
(in A literatura como experiência (2002) | Literatura, Defesa do Atrito, pp. 8-9)
Sendo ensaios académicos, deixo o aviso de que a linguagem pode ser uma barreira até para quem estiver familiarizado com o tipo de escrita ou mesmo com alguma preparação prévia. Demasiadas ideias numa mesma (e longa) frase por vezes, tornam o conteúdo algo intrincado e difícil de assimilar. Se é verdade que os temas abordados me interessam e as discussões que se encerram nesta obra são estimulantes, outra razão para a presença deste livro (a par de Herta Müller) como companhia nestes tempos recentes é a ligação com o próximo livro da minha autoria em curso. Longe de mim querer equiparar-me, nem tenho pretensões a tal, mas atrito é uma palavra e ideia que muito aprecio em contexto literário, assim como o conceito de estranheza, mencionado algumas vezes nestes ensaios. A literatura como experiência do incerto está omnipresente no pensamento desta compilação de textos.
Poderão adquirir este livro encomendando-o à editora, ou visitando livrarias que tendem a apoiar edições de pequenas editoras e alternativas, como a Livraria da Cossoul, em Lisboa, ou a Flâneur, no Porto, por exemplo.
(in Cada língua tem olhos diferentes | O Rei Faz Vénia e Mata, p. 14)
Galardoada em 2009 com o Prémio Nobel da Literatura, Herta Müller é uma escritora de dupla nacionalidade (romena e alemã) com um corpo de trabalho de contornos autobiográficos que descreve como poucos o medo, a violência e a opressão sofrida no regime ditatorial de Nicolae Ceaușescu, ou na ocupação Soviética da Roménia. Longe de serem meros relatos descritivos, o que os distingue é, entre outras coisas, a linguagem utilizada, fortemente poética e metafórica. Um discurso belo, elegante, mas também cru quando necessário, para nos falar do horror.
"(...) Eu tinha uma mão-cheia de amigos íntimos, líamos livros e falávamos sobre eles. Era a nossa ocupação principal, extrair coisas que líamos à medida da nossa vida. Podíamos ler a nossa miséria em livros científicos, formulada com objectividade, analisada com rigor, comentada com sobriedade. Podíamos reencontrar essa miséria em poemas e romances, na urgência da imagem poética. Ambos os modos de leitura davam firmeza, na medida em que confirmavam a nossa situação. Ajudavam a não ficarmos calados perante nós mesmos. Não havia nada que os livros pudessem mudar, dado que só nos mostravam como éramos quando não podíamos criar a felicidade. (...)"
(in A ilha fica dentro – a fronteira fica fora | O Rei Faz Vénia e Mata, pp. 154-155)
Um dos benefícios do referido prémio é a visibilidade que traz e, por conseguinte, a possibilidade de traduções de obras dos autores premiados para várias línguas. O Rei Faz Vénia e Mata (publicado originalmente em 2003) compila nove ensaios da autora, com alguns desses textos a terem origem em conferências. Não se pense com isto que estamos perante uma obra puramente teórica ou académica, como se associa normalmente ao ensaio. Espelhando uma tradição alemã, os textos são narrativos, literários e, no caso de Herta Müller, abrem-nos uma janela para o seu próprio processo criativo, as suas vivências e, ao mesmo tempo, incentivam-nos a pensar, a reflectir. Um dos assuntos abordados é o do peso que a linguagem pode ter na sociedade, como pode ser moldada, proibida ou reaprendida (em ditaduras particularmente), assim como certas palavras soam (e são) diferentes consoante a língua, o significado implícito alterando-se mediante a que se utiliza. Poderíamos extrapolar esta discussão para as próprias traduções de uma obra, que dependem substancialmente de quem a traduz e de onde origina (língua original ou de outra tradução). E no caso deste livro, referindo apenas o português, existe uma outra versão em português do Brasil, O Rei se Inclina e Mata, que é diferente a ponto de nos interrogarmos de qual será a mais correcta, com o dilema a surgir logo no título.
"(...) O vivido, como processo, está-se nas tintas para a escrita, não é compatível com palavras. Coisas que aconteceram verdadeiramente nunca podem ser captadas uma a uma por palavras. Para serem descritas, têm de ser recortadas de acordo com as palavras e completamente reinventadas. Ampliar, reduzir, simplificar, complexificar, mencionar, ultrapassar – uma táctica que segue os seus próprios caminhos e que tem o vivido apenas como pretexto. Arrastamos o vivido, ao escrever, para um ofício diferente. Experimentamos qual a palavra que é capaz do quê. Já não dia ou noite, aldeia ou cidade, o que impera é o substantivo e o verbo, frase subordinante e subordinada, cadência e sonoridade, verso e ritmo. O que aconteceu verdadeiramente insiste, à margem, e nós aplicamos-lhe um choque atrás do outro com as palavras. Quando já está irreconhecível, fica de novo no centro. Temos de demolir a presunção do vivido para escrever sobre ele, desviar-nos de todas as ruas verdadeiras para entrar numa inventada, porque só ela se pode assemelhar às verdadeiras. (...)"
(in Quando nos calamos, tornamo-nos incómodos – quando falamos, tornamo-nos ridículos | O Rei Faz Vénia e Mata, pp. 81-82)
O diálogo que a autora enceta consigo mesma e o que se pode denominar como texto literário tem o dom de nos fascinar e intrigar em igual medida. Ficamos divididos entre a abertura desarmante, as ideias e a beleza que perpassa de certas passagens. Um pensamento recorrente é o da dificuldade de se encontrar palavras para tudo, de existirem impossibilidades, de que a qualidade literária de um texto, segundo a autora, encontra-se quando ele estimula o leitor usando uma linguagem diferente da que ele reconhece, descartando a mera descrição de factos e ocorrências. E aqui, um dos exemplos citados por Herta Müller, curiosamente, é o do escritor português António Lobo Antunes.
O Rei Faz Vénia e Mata é um livro que nos ajuda a perceber melhor o universo desta escritora mas, mais do que isso, oferece-nos na primeira pessoa um olhar poético para o abismo, uma radiografia de situações limite desconhecidas para muitos de nós. A escrita, muito particular, sensível, confunde-nos constantemente, diluindo as fronteiras entre texto narrativo, literário, biográfico e teórico. Para quem estiver interessado, este livro ainda é passível de ser adquirido facilmente em livrarias ou lojas online especializadas.
--//--
Luiza Neto Jorge - A Lume (Assírio & Alvim, 1989)
"Nas cidades do sul
há violência e há excesso,
de semente.
Estalam os rios e foge a água.
O corpo, encortiçado, racha.
Lendas vêm de há séculos assoreando
as margens.
E quando à boca de um poço vamos
provar o nosso eco,
águas puras irrompem,
noutra língua."
(in A Lume, p. 45)
Disponibilidade para estar connosco próprios, em primeiro lugar, para depois nos permitirmos sair de nós. Ler poesia (e não só) é um prazer solitário, egoísta, que parte de um entendimento de que o texto à nossa frente nasce de uma linguagem diferente que abre portas do sentir e não, necessariamente, as que levam a um destino concreto e perceptível.
"Uma sombra encostava a pata
ao vidro da janela
Assim protegidos adormecíamos"
(in A Lume, p. 66)
Luiza Neto Jorge (1939–1989), é uma das vozes mais singulares da literatura portuguesa, tendo-se destacado na poesia e tradução. A Lume é um livro de poemas póstumo organizado pela autora antes da sua morte, com o manuscrito original a apresentar dificuldades várias por se encontrar repleto de emendas e rasuras, como se dá conta nas notas finais desta edição e a própria capa alude a esse processo de reconstrução. A memória do meu contacto com este livro é difusa. Tal como me aconteceu com alguns discos, que os adquiri há muitos anos por impulso, algo me chamou, um potencial indizível que só mais tarde poderia ser assimilado, sentido. O preço original, 1260 Escudos, ainda resiste escrito a lápis na página de abertura.
Nós, que medimos a morte,
não entramos de roldão desassossegando
o mundo. Alimentamo-nos de seres
menores
néons macios controlados
por ogres, bolas de sabão
que em silêncio estoiram.
E às jazidas do sémen, ao tenro veio da
madre
século após século retornamos.
(in A Lume, p. 15)
A intensidade é uma das características que nos impele a submergir nesta poesia em que o amor, a vida, a morte e o erotismo, entre outros, são temas recorrentes. O duelo entre o eu e o que fica por dizer tem o seu quê de hipnótico, como acontece em alguns dos poemas que integram a secção “Fragmentos” do livro, que faz jus ao título com as palavras a funcionarem como esconderijos, pequenos espaços de refúgio que fervem a imaginação.
"Perdida a face largada a pele
oco o osso curva a espinha
apela-se à grande concentração
São as primeiras letras
um vagido um balbucio de amor
não esperar mais escrevê-lo já
telefoná-lo
(a quanto o impulso)?"
(in A Lume, p. 65)
Imbuir-me de estranheza, vestir os silêncios entre cada pausa. Regressar a esta obra acarretou uma reconciliação com o passado, processo que tenho encetado gradualmente como tenho dado conta por aqui. Longe das preocupações adolescentes de um possível contágio, ler agora a poesia de Luiza Neto Jorge é saborear a unicidade da sua escrita com um sorriso. Sem grande surpresa, encontrar este livro, actualmente, pode revelar-se tarefa impossível. Como tal, podem tentar em alfarrabistas ou em páginas na internet com um foco em leilões como o Coisas, CustoJusto ou o OLX, por exemplo. Para quem estiver apenas interessado nos poemas contidos nesta recolha, a melhor alternativa é adquirir Poesia (1960-1989), edição da Assírio & Alvim que reúne toda a poesia de Luiza Neto Jorge.
--//--
Silvina Rodrigues Lopes- Literatura, Defesa do Atrito (Língua Morta, 3ª edição 2017)
"(...) Num mundo cuja organização económica provoca o embrutecimento de muitos e apenas permite o acesso de alguns ao uso da razão numa dimensão crítica capaz de recusar a identificação daquilo que é, do estado das coisas, com o natural ou o necessário, espera-se do intelectual a resistência aos mecanismos do embrutecimento, o que implica a resistência ao papel de garante da manutenção de um sistema que assenta naquela divisão, o qual, cientistas, professores, escritores e outros, são em maior ou menor grau chamados a representar. No entanto, isso já foi dito várias vezes, esta resistência dos intelectuais não justifica, de modo nenhum, a pretensão a serem “a consciência de todos”, bem pelo contrário, supõe o desejo de serem apenas uma voz entre outras, de acabarem com o tipo de distinção que os faz destacar-se. Para o poeta (o que até certo ponto é extensível ao criador de obras literárias), a exigência de anonimato coloca-se a um nível mais radical (...)"
(in A literatura como experiência (2002) | Literatura, Defesa do Atrito, pp. 34-35)
Silvina Rodrigues Lopes é professora catedrática em Teoria da Literatura na Universidade Nova de Lisboa. Juntamente com Manuel Gusmão, Helena Buescu e João Barrento, entre outros, simboliza uma geração que nos estimula a reflectir sobre a literatura (e não só) e o seu papel no mundo. Literatura, Defesa do Atrito (1ª edição 2003 - Edições Vendaval, 2ª edição 2012 - Chão da Feira), reúne 10 ensaios académicos que nos impelem a pensar sobre este assunto, que problematizam a noção de literatura, que provocam. Com as duas primeiras edições esgotadas há algum tempo, esta 3ª reedição a cargo da editora Língua Morta foi uma das melhores surpresas do ano transacto, mesmo para quem já tinha a versão digital da 2ª edição como é o meu caso, disponibilizada gratuitamente pela autora depois do livro esgotar.
"(...) A expansão do ensino da literatura e das artes só é importante se não se pretender equipará-la a qualquer ramo de conhecimento especializado: não se trata apenas de conhecimento, mas de iniciação, através do pensar, a uma dimensão da existência não vinculável a um círculo de competências e teorias. (...)"
(in A paradoxalidade do ensino da literatura (1999) | Literatura, Defesa do Atrito, p. 102)
Tendo em conta que alguns destes textos já têm entre 15 a 20 anos, não deixa de ser espantoso como continuam pertinentes nos dias de hoje, percebendo-se rapidamente o porquê desta nova reedição se atentarmos ao percurso da editora e postura pública da mesma.
"(...) Se quisermos resistir à confusão reinante, teremos que perceber que, entre os produtos que são produzidos e circulam segundo os desígnios da indústria da cultura, e uma ideia de literatura como forma artística, não há nada em comum para além de palavras impressas. É preciso impedir que a banalidade que aparece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade. (...)"
(in A literatura como experiência (2002) | Literatura, Defesa do Atrito, pp. 8-9)
Sendo ensaios académicos, deixo o aviso de que a linguagem pode ser uma barreira até para quem estiver familiarizado com o tipo de escrita ou mesmo com alguma preparação prévia. Demasiadas ideias numa mesma (e longa) frase por vezes, tornam o conteúdo algo intrincado e difícil de assimilar. Se é verdade que os temas abordados me interessam e as discussões que se encerram nesta obra são estimulantes, outra razão para a presença deste livro (a par de Herta Müller) como companhia nestes tempos recentes é a ligação com o próximo livro da minha autoria em curso. Longe de mim querer equiparar-me, nem tenho pretensões a tal, mas atrito é uma palavra e ideia que muito aprecio em contexto literário, assim como o conceito de estranheza, mencionado algumas vezes nestes ensaios. A literatura como experiência do incerto está omnipresente no pensamento desta compilação de textos.
Poderão adquirir este livro encomendando-o à editora, ou visitando livrarias que tendem a apoiar edições de pequenas editoras e alternativas, como a Livraria da Cossoul, em Lisboa, ou a Flâneur, no Porto, por exemplo.
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