McCullin: A Fotografia como Verdade e Consciência


O que vale uma imagem, ou quão importante pode ser? Esta é uma questão passível de se colocar dentro de inúmeros contextos. No actual, em que se vive uma nova crise mediática relacionada com refugiados e imigração, em que impera o excesso de informação ou de desinformação, de manipulação das nossas emoções por parte de muitos órgãos de comunicação, é natural que nos vejamos a pensar ainda mais no assunto. Ou a não pensar sequer. Nisso, ou no que vemos, atordoados pelo fluxo de informação que se atropela por um pouco da nossa atenção. Somos um animal que se distrai muito facilmente. E que se esquece. E que adormece, também.


Se atendermos à evolução da tecnologia, percebemos que o Vídeo é hoje um meio forte, de grande destaque, que cresceu exponencialmente nos últimos anos. Internet, redes sociais, sites especializados, a partilha de vídeos assola-nos diariamente as retinas. Mas curiosamente, ao contrário do que sucedeu à Pintura por exemplo, relegada para um segundo plano de impacto social, de interesse generalizado e das nossas memórias com a proeminência da Fotografia, esta última continua, salvo raras excepções, a ser o veículo perfeito para passar uma mensagem, para marcar em nós um momento, uma memória que nos obriga a suspender o tempo, a uma reacção imediata. A fotografia certa, as palavras que a acompanham e que lhe dão contexto. É assim no presente, aconteceu o mesmo no passado e será, muito certamente, assim no futuro também, seja ele o registo de um casamento, a necessidade narcisística das pessoas se fotografarem a si próprias ou tudo o que seja, de criar uma imagem de si próprias, as crianças cuja morte nos transfixa o olhar, as pilhas de corpos que envergonham a humanidade. A fogueira das vaidades, o grotesco e o macabro, as fronteiras esbatem-se, não parece existir muita distinção neste feitiço da Fotografia actualmente.


Donald McCullin (1935-), mais conhecido como Don McCullin, é um fotógrafo inglês que se especializou a documentar a condição humana. Gangues de Londres, sem-abrigo, reportagens de guerra no mundo inteiro, a população de cidades específicas. Muitas das suas imagens prendem-nos, afixam-se no nosso olhar. A intensidade de muitas das suas fotografias é desconcertante, com várias a tornarem-se emblemáticas de uma época ou conflito armado. É um fotógrafo com um sentido de composição muito próprio, capaz de nos sensibilizar apenas com uma imagem, de incomodar. Neste documentário poderão encontrar várias dessas obras, mas também um ser humano com histórias para contar, com um sentido de responsabilidade que nos desarma com a sua honestidade.


um relato na primeira pessoa de um fotógrafo extraordinário, de câmaras escuras atormentadas por fantasmas, de memórias que não se esquecem.
Tal como nos apercebemos no fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado (1944-), seja em entrevistas ou no mais recente documentário The Salt of The Earth, Don McCullin também perdeu a fé na humanidade ao testemunhar os horrores que somos capazes de infligir ao Outro. Ambos fazem parte de um conjunto de fotógrafos com uma visão ímpar, que escolhem muito bem o que decidem captar e isso percebe-se ao escutarmos os contextos que Don McCullin descreve. Alguns fazem-nos tremer só de ouvir tais narrativas saídas dos piores pesadelos, de realidades que a maior parte do comum dos mortais não faz a mínima ideia do que é viver dentro delas. Sente-se uma humildade e maneira de ser diferente em Don McCullin em relação a outros pares do fotojornalismo, o que também se sente no já referido Sebastião Salgado. Quem sabe seja da idade que ambos já possuem, da sua experiência de vida, uma certa maturidade e visão do mundo que se alcança dessa forma. Hoje em dia, tal como também é referido pelo próprio neste documentário, nem nos parece possível a existência de certos relatos imparciais como ele fez no passado devido à censura, mas igualmente devido à tendência de muita da comunicação social pender para o extremismo e sensacionalismo, para a manipulação de massas. E também porque muitas pessoas envolvidas na profissão parecem estar mais interessadas em tentar ganhar prémios ou cliques a explorar a desgraça dos outros do que outra coisa qualquer infelizmente.



Acabaria por se tornar uma coincidência a visualização deste documentário. Uma muito pertinente coincidência diga-se, tendo em conta o momento que se vive. Tal como foi a de termos visto The Salt of The Earth e Regarding Susan Sontag nesta mesma altura já que são três obras que se complementam, de certo modo, e que nos dão um prisma do poder da Fotografia, de como ela pode afectar a percepção que temos do mundo e o que sentimos sobre o que nos rodeia. Susan Sontag (1933-2004) chegou mesmo a escrever um livro relacionado com o que aqui se fala, de nome Olhando o Sofrimento dos Outros, e que o que define Don McCullin “é o inesquecível da sua fotografia de consciência.”.


McCullin é um relato na primeira pessoa de um fotógrafo extraordinário, de câmaras escuras atormentadas por fantasmas, de memórias que não se esquecem. E isso, assim como o tempo que era obrigado a passar fora de casa, acabaria por ter implicações negativas na sua vida pessoal. Os riscos que correu para captar muitas das suas fotografias também não ajudaram. Ameaçado com uma faca em Beirute, no Líbano, cegado com gás lacrimogéneo em Derry, na Irlanda do Norte, ferido devido a fragmentos de morteiro no Camboja, capturado no Uganda e levado para uma prisão onde todos os dias eram assassinadas centenas de pessoas com uma marreta. Numa ocasião chegou mesmo a ser alvejado no Vietname, mas a sorte ditou que a bala fosse travada pela sua máquina fotográfica.



O silêncio ocupa-se de nós em várias ocasiões. Noutras, admiramos a empatia exibida pelo fotógrafo perante pessoas que sofrem calamidades inimagináveis. Não ficamos indiferentes a ele e muito menos às imagens. Apesar do sucesso das suas fotografias relacionadas com o lado mais negro e perverso da humanidade, o seu talento e maneira de ver as coisas não se limita a isso, incomoda-o até ser conhecido apenas como um fotógrafo de guerras. Algumas reportagens presentes no documentário, com fotografias difíceis de encontrar ainda hoje online, mostram um outro lado, uma luz diferente.


Por muito que possamos dizer que as imagens de Don McCullin valem por si, acabamos por perceber aos poucos que as suas palavras são tão ou mais importantes, que possuem uma força que requer toda a nossa atenção. Elas dão uma outra vida às fotografias, ajudam-nos a perceber do que tratam, o porquê daquele momento em específico, a decisão que o levou a captar aquele instante e qual a razão de não querer outros, o homem por detrás da câmara. E isso revela-se tanto no documentário como nos artigos que publicava para os jornais ingleses The Observer e The Sunday Times por exemplo. E é esta importância que não pode ser esquecida quando olhamos para certas imagens, o que levaria a que acabasse por ser afastado e impedido de fazer certas reportagens, ou até a ser ameaçado de morte por algumas das suas fotografias e relatos. A imparcialidade tem destas coisas, quando não se poupam lados, quando navegamos num mar cinzento em que se torna difícil perceber quem são os vilões ou culpados. A reportagem que fez sobre a guerra do Vietname é um marco e aí, como noutros casos, trouxe-nos para dentro de casa as realidades de um conflito armado de uma forma raramente vista, o que se mantém até hoje.


Realizado de forma exímia, este documentário mostra-nos um pouco da vida e obra de Don McCullin, toca-nos no âmago do nosso ser com as suas imagens e histórias carregadas de demónios, de horrores que marcam uma pessoa para sempre. Não será por acaso que nos últimos anos o fotógrafo se tem dedicado a outro tipo de temas, em particular às paisagens, tal a carga traumática emocional que carrega dentro de si. Para quem estiver interessado, além do trailer que deixo um pouco mais abaixo, por enquanto é possível visualizar o documentário na sua totalidade aqui caso não tenham problemas com o Inglês, ou então aqui com legendas em Espanhol. Quão importante pode ser uma imagem? A resposta poderá estar nesta citação do próprio: “Fotografia é a verdade, se estiver nas mãos de uma pessoa verdadeira.”