Eléctrico 59. Fico surpreendido por estar a subir uma encosta. As árvores começam a tomar conta do caminho e limitam a passagem dos raios de sol, as casas tornam-se mais escassas. Estou na parte de Buda, numa das áreas mais elevadas da cidade.
Uma pequena igreja, uma florista, poucas pessoas em redor. Na entrada um grifo imponente dá-nos as boas vindas e as primeiras gotas de chuva fazem-se sentir. É já com o cheiro a terra molhada que uma senhora toca harpa. A seu lado, os espíritos escutam a melodia em silêncio. Noutra zona do cemitério, é um violino que se faz ouvir.
O cemitério Farkasréti, situado na rua Németvölgyi do distrito XII, é um dos cemitérios mais importantes de Budapeste, a par do cemitério Kerepesi. Inaugurado em 1894, é o local de repouso de muitos artistas, mas também de pessoas ligadas ao meio académico, ao desporto, à nobreza, ou a outras classes da sociedade.
O ambiente, mais intimista do que o Kerepesi, requer uma abordagem diferente não só para quem o quer visitar, como também para quem desejar tirar fotografias. Neste último campo é de bom-tom tentar falar com alguém, caso contrário poderão ter um funcionário em pânico atrás de vocês por não perceber o que estão a fazer. Atendendo à minha capacidade muito limitada de comunicar em Húngaro e ao pormenor de ser muito difícil encontrar uma pessoa no local que fale Inglês, o processo é toda uma aventura. O consenso é o respeito pelas pessoas, pelo espaço e por tentarmos explicar da melhor maneira possível a nossa intenção, ou até um pouco do nosso trabalho. “Você tira fotografias a campas?”, perguntam-me. Sorrio, falo das estátuas, das obras de escultura, dos pormenores, do livro que desejo fazer sobre a Hungria, das histórias que quero contar, explico-me com a ajuda de muita linguagem gestual.
A chuva cresce de intensidade. Abrigo-me debaixo da soleira de uma porta, limpo a lente da máquina fotográfica, deixo que a paz me tolde a paciência. Um dos funcionários imita-me. Tem os olhos pequeninos, molhados pela idade, uma candura que embevece. Noutra altura ter-lhe-ia tirado um retrato, hoje cumprimento-o apenas porque a lente não está concentrada nos vivos.
Olho em redor. O cemitério é enorme e estende-se por várias áreas. Algumas, tal como esta zona da cidade, obrigam a que entremos por território desconhecido e sempre a subir. À medida que exploro os caminhos, reparo que no Farkasréti parecem existir mais pessoas a prestar homenagem a entes queridos, ou a regar as campas, ou a substituir a água nas flores. Mais um sinal de que o ambiente é diferente. Os passos tornam-se mais pausados.
São milhares os túmulos. Em certos casos, a natureza assume o papel de rainha e abraça as esculturas com ramos de árvores e folhas de arbustos. É uma visão que incomoda e perturba, uma beleza escondida que me deixa a pensar. Quantas pessoas não estarão esquecidas nestes locais? Quantas obras de arte? Qual o destino destas pessoas todas e que vida tiveram?
As esculturas que podemos encontrar aqui são, novamente, fascinantes, variadas e, em alguns casos, extremamente originais e poéticas. Mas também podem ser fruto do acaso, já que percorrer todo o cemitério num dia é impossível. Bustos, estátuas, lápides, mausoléus. Existem trabalhos maravilhosos espalhados ao longo de todo o território, mas grande parte só pode ser visto se tivermos a sorte de estar a explorar um caminho específico ou de estar a olhar na direcção certa.
Quanto mais subimos, mais isolados ficamos. O silêncio só é interrompido pelo barulho dos animais. Um esquilo territorial alerta-nos para a sua presença, esta zona pertence-lhe. A vista sobre a cidade é outro dos pólos de atracção do Farkasréti e não desilude. Sentado, pondero na vida de todas as pessoas que encontraram aqui o seu lugar de repouso eterno, na idade de todas elas. Algumas, meras crianças, como atestam os brinquedos nas campas, as inscrições, ou as fotografias. A melancolia apodera-se de nós.
No tempo do regime Comunista (1949-1989), os funerais religiosos foram proibidos no cemitério Kerepesi, o que levou a que o Farkasréti fosse o único local, durante esse período, onde podiam ser efectuados. A História conturbada de um país, contada sem voz, dos que já não comunicam de forma corpórea.
Um pequeno respirar fundo. Alguém deixou uma faixa a representar a Hungria na estátua de uma actriz. Máscaras de teatro aos seus pés. Noutra estátua, um ramo de rosas foi preso aos braços de uma figura feminina. Não estamos sozinhos nesta vontade de não deixar esquecer, os detalhes comprovam-no. É um respeito pelos mortos e por nós, que ainda estamos vivos por dentro e por fora.
Olhares que se cruzam, não passamos despercebidos nem ficamos indiferentes. Farkasréti é um cemitério com um ambiente pacífico, mágico e particular, mas também muito humano. O conceito de horas desaparece, o caos da cidade é posto de lado. A catarse chega até nós na minúcia dos pormenores, na overdose de belo que nos ameaça esmagar a qualquer momento. Há palavras que já desapareceram, sem dono, estátuas com buracos ou com falta de membros, há um equilíbrio entre o jardim cuidado com amor e o deixar a natureza respirar, há poemas para recitar em silêncio e imagens para registar que só existem na nossa cabeça. Há uma vontade de não partir.
Uma pequena igreja, uma florista, poucas pessoas em redor. Na entrada um grifo imponente dá-nos as boas vindas e as primeiras gotas de chuva fazem-se sentir. É já com o cheiro a terra molhada que uma senhora toca harpa. A seu lado, os espíritos escutam a melodia em silêncio. Noutra zona do cemitério, é um violino que se faz ouvir.
O cemitério Farkasréti, situado na rua Németvölgyi do distrito XII, é um dos cemitérios mais importantes de Budapeste, a par do cemitério Kerepesi. Inaugurado em 1894, é o local de repouso de muitos artistas, mas também de pessoas ligadas ao meio académico, ao desporto, à nobreza, ou a outras classes da sociedade.
O ambiente, mais intimista do que o Kerepesi, requer uma abordagem diferente não só para quem o quer visitar, como também para quem desejar tirar fotografias. Neste último campo é de bom-tom tentar falar com alguém, caso contrário poderão ter um funcionário em pânico atrás de vocês por não perceber o que estão a fazer. Atendendo à minha capacidade muito limitada de comunicar em Húngaro e ao pormenor de ser muito difícil encontrar uma pessoa no local que fale Inglês, o processo é toda uma aventura. O consenso é o respeito pelas pessoas, pelo espaço e por tentarmos explicar da melhor maneira possível a nossa intenção, ou até um pouco do nosso trabalho. “Você tira fotografias a campas?”, perguntam-me. Sorrio, falo das estátuas, das obras de escultura, dos pormenores, do livro que desejo fazer sobre a Hungria, das histórias que quero contar, explico-me com a ajuda de muita linguagem gestual.
A chuva cresce de intensidade. Abrigo-me debaixo da soleira de uma porta, limpo a lente da máquina fotográfica, deixo que a paz me tolde a paciência. Um dos funcionários imita-me. Tem os olhos pequeninos, molhados pela idade, uma candura que embevece. Noutra altura ter-lhe-ia tirado um retrato, hoje cumprimento-o apenas porque a lente não está concentrada nos vivos.
Olho em redor. O cemitério é enorme e estende-se por várias áreas. Algumas, tal como esta zona da cidade, obrigam a que entremos por território desconhecido e sempre a subir. À medida que exploro os caminhos, reparo que no Farkasréti parecem existir mais pessoas a prestar homenagem a entes queridos, ou a regar as campas, ou a substituir a água nas flores. Mais um sinal de que o ambiente é diferente. Os passos tornam-se mais pausados.
Quantas pessoas não estarão esquecidas nestes locais? Quantas obras de arte? Qual o destino destas pessoas todas e que vida tiveram?
São milhares os túmulos. Em certos casos, a natureza assume o papel de rainha e abraça as esculturas com ramos de árvores e folhas de arbustos. É uma visão que incomoda e perturba, uma beleza escondida que me deixa a pensar. Quantas pessoas não estarão esquecidas nestes locais? Quantas obras de arte? Qual o destino destas pessoas todas e que vida tiveram?
As esculturas que podemos encontrar aqui são, novamente, fascinantes, variadas e, em alguns casos, extremamente originais e poéticas. Mas também podem ser fruto do acaso, já que percorrer todo o cemitério num dia é impossível. Bustos, estátuas, lápides, mausoléus. Existem trabalhos maravilhosos espalhados ao longo de todo o território, mas grande parte só pode ser visto se tivermos a sorte de estar a explorar um caminho específico ou de estar a olhar na direcção certa.
Quanto mais subimos, mais isolados ficamos. O silêncio só é interrompido pelo barulho dos animais. Um esquilo territorial alerta-nos para a sua presença, esta zona pertence-lhe. A vista sobre a cidade é outro dos pólos de atracção do Farkasréti e não desilude. Sentado, pondero na vida de todas as pessoas que encontraram aqui o seu lugar de repouso eterno, na idade de todas elas. Algumas, meras crianças, como atestam os brinquedos nas campas, as inscrições, ou as fotografias. A melancolia apodera-se de nós.
No tempo do regime Comunista (1949-1989), os funerais religiosos foram proibidos no cemitério Kerepesi, o que levou a que o Farkasréti fosse o único local, durante esse período, onde podiam ser efectuados. A História conturbada de um país, contada sem voz, dos que já não comunicam de forma corpórea.
Um pequeno respirar fundo. Alguém deixou uma faixa a representar a Hungria na estátua de uma actriz. Máscaras de teatro aos seus pés. Noutra estátua, um ramo de rosas foi preso aos braços de uma figura feminina. Não estamos sozinhos nesta vontade de não deixar esquecer, os detalhes comprovam-no. É um respeito pelos mortos e por nós, que ainda estamos vivos por dentro e por fora.
Olhares que se cruzam, não passamos despercebidos nem ficamos indiferentes. Farkasréti é um cemitério com um ambiente pacífico, mágico e particular, mas também muito humano. O conceito de horas desaparece, o caos da cidade é posto de lado. A catarse chega até nós na minúcia dos pormenores, na overdose de belo que nos ameaça esmagar a qualquer momento. Há palavras que já desapareceram, sem dono, estátuas com buracos ou com falta de membros, há um equilíbrio entre o jardim cuidado com amor e o deixar a natureza respirar, há poemas para recitar em silêncio e imagens para registar que só existem na nossa cabeça. Há uma vontade de não partir.
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