Budapeste: O cemitério Kerepesi


Estação de comboios Keleti. Os nomes no placar das partidas indicam como destinos possíveis várias cidades húngaras e outras europeias. É uma zona, tal como outras dentro do distrito VIII, que nos pede para ter algum cuidado e para estarmos mais atentos a questões de segurança. Isso é visível na população e nos comportamentos. E é precisamente aqui perto, a cerca de 10 minutos a pé, que se encontra um dos locais mais bonitos e únicos de Budapeste.


O muro que delimita a vasta área do cemitério Kerepesi, em padrão tijolo escuro, acompanha parte da rua Fiumei. Para quem observa de fora, o primeiro contacto é um sentimento estranho não só pelo tipo de lugar, como também pelo pouco que dá para ver e pelo próprio muro em si, que nos remete para imagens da Segunda Guerra Mundial ou para outros momentos marcantes da História. O coração bate mais depressa.


À entrada, os arrepios iniciais são postos de lado. Os caminhos cuidados, as flores, as árvores, o silêncio. Uma sensação de paz começa a tomar conta de nós. Com um sorriso tímido, cumprimentamos os funcionários com um bom dia em Húngaro. Eles retribuem com simpatia.


Fundado em 1847, este cemitério é um dos maiores Panteões Nacionais da Europa e contém um dos maiores parques de estátuas em relação à dimensão do seu espaço, que é de 56 hectares. Esta é uma das principais razões que nos levou a visitá-lo, mas o que torna todo o ambiente mágico é um conjunto de vários factores.

A experiência é única e muito diferente do que normalmente se poderia esperar de um local assim.
O cuidado presente no cemitério, a organização que permite um respirar equilibrado entre a sensação de museu ao ar livre permeado de obras de arte e os memoriais, os mausoléus e os vastos caminhos intercalados com enormes espaços verdes, jardins ou bancos. A variedade e qualidade das esculturas, o silêncio quebrado apenas pelas várias espécies animais que habitam o cemitério. A experiência é única e muito diferente do que normalmente se poderia esperar de um local assim.


As comparações com o cemitério Père Lachaise, em Paris, que tivemos oportunidade de visitar em 2012, serão óbvias, mas são atmosferas muito diferentes. O Père Lachaise tem uma vertente muito mais turística, o Kerepesi é uma experiência transcendental que nos entra na alma. O efeito é de tal modo catártico que não temos a menor dúvida de que este é um dos locais mais especiais e bonitos que visitámos até hoje.


Mistura de museu, jardim botânico e reserva natural, o cemitério Kerepesi é o local de repouso de muitas figuras emblemáticas da Hungria. Políticos, artistas, cientistas, arquitectos, actores, etc., são muitos os nomes. Os primeiros funerais começaram dois anos após a sua inauguração e demos por nós a reconhecer vários nomes, por estes estarem presentes em ruas da cidade ou nas estações de metro, por exemplo. É impossível ficarmos indiferentes a túmulos elaborados como o da actriz e cantora Lujza Blaha, do Primeiro-Ministro József Antall (primeira eleição democrática após a queda do Comunismo), ou aos mausoléus imponentes de Ferenc Deák, Lajos Kossuth e Lajos Batthyány, ou às arcadas magistrais construídas no início do século XX.


Para quem gosta de escultura, existe realmente muito para ver e para descobrir. A overdose é tal que precisamos de alguns dias para reflectir sobre o que vimos, para descomprimir, para absorver toda a informação. 10 horas neste local e cerca de 800 fotografias depois, a sensação é a de que ainda estou longe de ver tudo. Podia fazer um livro apenas sobre este cemitério facilmente. Algumas das estátuas mais originais estão afastadas dos pontos principais ou nem figuram no mapa que podemos requisitar na entrada, o que convida à exploração. Podem encontrar-se obras de extrema beleza e outras que nos arrepiam de várias maneiras, como é o caso da figura masculina que, atrás de si, tem outra de capa e capuz a representar a morte.



Os monumentos e as estátuas contam-nos narrativas que alternam entre luz e escuridão. Há esperança e desespero, dor e vida, tristeza e sonhos. Uma História de guerras e revoluções que marcaram o país. E também existem curiosidades e polémicas. Pessoas que cometeram suicídio foram autorizadas a ser sepultadas neste cemitério, o que não é muito comum, assim como as que foram executadas. No final da Segunda Guerra Mundial, as tropas nazis e soviéticas defrontaram-se neste cemitério, o que causou inúmeros danos. Posteriormente, já durante o regime comunista, muitas campas foram alvo de ataques.


Para dar algum contexto a quem desconhece esta parte da História, após a Segunda Guerra Mundial a Hungria foi ocupada pelo Exército Vermelho Soviético e o período Comunista Soviético na Hungria decorreu de 1949 até 1989. De 23 de Outubro a 10 de Novembro de 1956, ocorreu o que se denominou de Revolução Húngara de 1956, que começou como uma demonstração de estudantes em frente ao Parlamento e que acabaria por se alargar a toda a capital, durante 17 dias. Nessa altura, as forças soviéticas acabaram com a revolução e mais de 2500 Húngaros morreram na batalha. Muitas destas pessoas estão enterradas em Kerepesi, em duas secções que servem como memorial.


Em contraste, este é também um dos poucos locais em Budapeste onde se pode observar a palavra Comunismo escrita em destaque num monumento controverso, situado numa das partes do cemitério, com o slogan “Eles viveram para o Comunismo e para as pessoas”. Por essa razão e devido à história negra durante esse período, várias pessoas recusaram sepultar familiares seus no cemitério Kerepesi, como aconteceu com um dos filhos do compositor Béla Bartók, por exemplo, que proibiu que as cinzas do seu pai aqui fossem enterradas.


A existência neste cemitério da campa de János Kádár, líder comunista húngaro que exerceu cargos políticos de 25 de Outubro de 1956 a 22 de Maio de 1988, também não ajudou à polémica e à perpetuação de sentimentos contraditórios. No dia 2 de Maio de 2007, a sua campa foi vandalizada e parte dos seus ossos, incluindo o crânio, foram desenterrados e roubados, juntamente com a urna da sua mulher. Os autores do acto deixaram a mensagem escrita “assassinos e traidores não podem repousar em solo sagrado 1956-2006”. Alheia a tudo isto, uma raposa bebé passeava nesta área.


Visitar um local como este é um apelo a conhecermos um pouco da História do país, a meditar num banco, a fugir por momentos da confusão típica das grandes cidades. Relativizamos ainda mais a importância das coisas que nos perturbam, bebemos ainda mais do néctar da humildade.


A início pode parecer algo mórbida esta vontade de conhecer um cemitério e de registar momentos dramáticos perdidos no tempo como estes, mas Kerepesi não é um cemitério normal. O relógio deixa de funcionar e somos absorvidos por um buraco negro de emoções. É fácil esquecermos que ao nosso redor estão túmulos, devido ao tal ambiente muito particular, e quem toma conta do espaço parece também estar perdido neste estranho mundo. A devoção e o respeito imperam. Há funcionários a tratar plantas individualmente, outros a trabalhar em campas. Cruzo-me com alguns por sorte, partilhamos o anonimato, olhamos para cima e tentamos descobrir de onde vêm os diálogos dos corvos e das pegas rabudas, voltamos ao nosso caminho, invisíveis.