Suster a respiração, suplantar as dores musculares e mergulhar a cabeça no leito de água. Sempre gostei da cor desta banheira, azul-bebé, com torneiras pintadas de branco e tampos pretos ladeados por um rebordo vermelho. Um caos cromático.
A ruptura não se dá ao acaso, é precedida por picos emocionais e criativos, por paixões sulfurosas e assolapadas. Eunice tinha umas pernas bem torneadas, as formas desaguando num ventre que apetecia beijar a cada minuto. Não tinha a minha apetência para os jogos da língua, mas gostava de me asfixiar os caracóis com os dela.
Tínhamos por hábito as tardes passadas em casa a assistir de mãos dadas aos filmes protagonizados pela Marlene Dietrich. Era uma das minhas alcunhas, ou não partilhasse com a actriz e cantora o mesmo nome próprio. Nuas, abraçávamos o ar com o fumo das nossas cigarrilhas, em poses a imitar as dos filmes a preto e branco.
Filmei-te várias vezes encostada às janelas da sala, tirei-te fotos na sumptuosidade da distracção, adorava fazer colagens com várias partes do teu corpo.
Eunice não tinha uma beleza vulgar, o rosto era o de um fantasma, pálido, com um vazio nos olhos que nos perfurava a alma. O nariz, ligeiramente torto e com um formato angular, servia de base aos óculos pequenos com lentes redondas. Os braços, esguios, exibiam-se sem força para quem não a conhecesse.
A decisão de queimar um livro vem de dentro, de um fogo que nos queima as entranhas só de pensarmos nas páginas em que prevalecem as palavras, os vestígios de sermos nós. A caneta dita quando o amor começa e quando chega a hora de extinguirmos a enfermidade que nos corrói a cabeça e o coração. Eunice era assim, uma folha em branco, preenchida com minudências, um rumo que não expunha um destino e que se cingia à vontade de se deixar ir ao abandono.
No papel, nos pulsos que cortei, nas cicatrizes que predominam, matei Eunice num dia iletrado. Presa às amarras da vida, somente por capricho, porque podia, fiz-me viúva. Somente.
Nuno Almeida
Contos do Tirano
2011
A ruptura não se dá ao acaso, é precedida por picos emocionais e criativos, por paixões sulfurosas e assolapadas. Eunice tinha umas pernas bem torneadas, as formas desaguando num ventre que apetecia beijar a cada minuto. Não tinha a minha apetência para os jogos da língua, mas gostava de me asfixiar os caracóis com os dela.
Tínhamos por hábito as tardes passadas em casa a assistir de mãos dadas aos filmes protagonizados pela Marlene Dietrich. Era uma das minhas alcunhas, ou não partilhasse com a actriz e cantora o mesmo nome próprio. Nuas, abraçávamos o ar com o fumo das nossas cigarrilhas, em poses a imitar as dos filmes a preto e branco.
Filmei-te várias vezes encostada às janelas da sala, tirei-te fotos na sumptuosidade da distracção, adorava fazer colagens com várias partes do teu corpo.
Eunice não tinha uma beleza vulgar, o rosto era o de um fantasma, pálido, com um vazio nos olhos que nos perfurava a alma. O nariz, ligeiramente torto e com um formato angular, servia de base aos óculos pequenos com lentes redondas. Os braços, esguios, exibiam-se sem força para quem não a conhecesse.
A decisão de queimar um livro vem de dentro, de um fogo que nos queima as entranhas só de pensarmos nas páginas em que prevalecem as palavras, os vestígios de sermos nós. A caneta dita quando o amor começa e quando chega a hora de extinguirmos a enfermidade que nos corrói a cabeça e o coração. Eunice era assim, uma folha em branco, preenchida com minudências, um rumo que não expunha um destino e que se cingia à vontade de se deixar ir ao abandono.
No papel, nos pulsos que cortei, nas cicatrizes que predominam, matei Eunice num dia iletrado. Presa às amarras da vida, somente por capricho, porque podia, fiz-me viúva. Somente.
Nuno Almeida
Contos do Tirano
2011
4 comentar
Click here for comentarhá algo na magia das palavras que só a alma sabe decifrar .
Replyserá, certamente, a forma como olhamos para cada um dos nossos momentos , da perspectiva com que captamos as histórias que nos rodeiam ... falamos delas com carinho
a musica dá-lhe sabor ...
Sim :)
ReplyObrigado como sempre pela partilha e enquanto existir inspiração e vontade para ambas, cá estaremos. :)
é bom ser capaz de comunicar ... a maioria das pessoas tem vergonha.
Replya tua pratica mostra que é possivel comunicar os estados de alma sem intimidar , nem provocar ...
bom fds
É uma maneira curiosa de ver as coisas e agradeço novamente as palavras. :)
ReplyContinuação de bom fds por aí também. :)
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