O Cisne Negro

"A hora é tardia, calças arrastando-se levemente pelo chão, cinto e fivela presos desleixadamente, fingindo que não quero saber, o suficiente para deixar a cintura a descoberto e os pêlos que vão descendo da barriga e umbigo um lugar à imaginação. Danço no limite, nos obstáculos, na maneira como caminho, como olho em frente, aprendendo a não abrir os portões a qualquer pessoa.

Entre as peças de roupa que teimo em usar regularmente, algumas têm propósitos muito definidos, simbolismos do inconstante, de vertigem, embriaguez de solidão.

Com melancolia, encanto. Com palavras, apaixono, assusto e excito, numa provocação sem razão lógica de ser, oferecendo sonhos a quem espera por eles, diluindo-me no cimento que sustenta os alicerces da inquietude.

Namoramos em segredo, escondidos de nós, e acabaste de me perder, ou pelo menos assim parece, à medida que volto para dentro, sem esperar respostas, mexendo as mãos e braços, cortando o ar, solto, em vias de ser mais uma ilusão. Outros eus irão surgir, e outros eus irão morrer, num ciclo de abuso e auto-mutilação, que faz parte deste brilho que te ofusca todas as manhãs, em que acordas com os olhos remelados, sentindo o corpo a teu lado, os sinais nas costas, as rugas e estrias nas nádegas, as imperfeições que fazem todos os momentos parecerem mais especiais do que verdadeiramente são.

Fixamente, olho para o corpo estendido, pensando em como tudo é tão estranho, em como tudo é tão desconhecido, todos estes nomes que já passaram por mim, todos os que já estiveram em mim, por vezes durante dias, semanas, meses, anos, muitos anos, marcas que vão sendo desfeitas com uma normalidade perturbadora, casualidades desta guerra dos sentidos, dos sonhos e caminhos sinuosos, das imagens que se repetem, das palavras que martelam o peito, deixando-me atordoado e sem vontade, em fuga constante.

Quando deres por isso, já terei desaparecido, como um reflexo ténue nas lágrimas, do sal que te queima a pele, mas irei continuar nos teus sonhos platinados, de mundos que se querem explorados, morto nas esferas do momento, rumo ao infinito."

Nuno Almeida, O Livro Dos Cisnes Negros, 2009

6 comentar

Click here for comentar
elsafer
admin
04 junho, 2009 01:40 ×

as sombras da imagem que construimos dos outros, nunca desaparecem , ficam as lágrimas , a dor e uma parte de nós

Reply
avatar
04 junho, 2009 04:21 ×

Sim, mesmo que tenhamos sempre de seguir em frente.

Reply
avatar
elsafer
admin
04 junho, 2009 08:24 ×

sempre em frente .... com alguns momentos de paragem para reflectir

Reply
avatar
04 junho, 2009 13:06 ×

É um percurso de aprendizagem curioso, se é que lhe pode chamar-se assim.

Reply
avatar
elsafer
admin
04 junho, 2009 14:17 ×

pode claramente .... os momentos de paragem são tambem de viragem , pois aprendemos a conhecermos o nosso comportamento ... e serão sempre as paragens forçada , mais dolorosas as mais interiorizadas .... ganhamos sabedoria e sedução

Reply
avatar