Eternamente

"A luz esconde-se há muito e, eternamente, deambulo pelos cantos da que os meus olhos me dá a conhecer, algures entre o reflectir e a calma, sentindo como tudo pode ser tão imenso se nos dermos ao luxo de o sentir dessa maneira.

Ainda com pedaços de sono, caminho em direcção a cavalos de metal, procurando na carteira as moedas necessárias para dar o menos trabalho possível a quem ganha a vida por detrás dos compartimentos de vidro, figuras que não consigo deixar de dizer um olá que seja.

Nas redondezas deste comboio passam imagens, não só pela janela como pelo que me vai entrando nos ouvidos, conversas rotineiras, psicologias, há algo de fascinante em alhear-nos nos outros, e dos outros. Punho direito encostado à face, deixo cair a cabeça até à parede, nada temendo, escutando as dezenas de vozes, passeando sem sair do lugar, encosta abaixo, até me despenhar na próxima paragem, que pode bem ser a tua, quando abrires a boca e me deixares escutar as maiores banalidades possíveis como se a tua vida dependesse disso.

O meu patrão isto, a minha colega aquilo, o meu marido, os meus filhos, este tempo, a história da vizinha, a pessoa que foi assaltada no outro dia, a gaja que comi ontem, a sopa que tenho à espera, o governo, a professora que é uma baldas…, quando estamos neste comboio tudo o que nos é importante muda drasticamente, preenchendo-nos o vazio diário, sem grandes exigências, sempre à procura de uma nova história para contar, onde temos sempre razão do nosso ponto de vista e estamos a lutar contra um mundo que está do avesso e contra nós. Somos uns incompreendidos, nada faz sentido e, no entanto, a esperança continua lá, a busca de algo, de um final feliz.

Entre os jornais e a informação descartável, irá chegar o momento de levantar a cabeça, desdobrar as pernas e revelar uma altura maior do que aparentava, continuando o meu caminho até outros dias, outras histórias e outras circunstâncias, até que deixe de ouvir os próprios passos na imensidão da estagnação."

Nuno Almeida, O Livro Dos Cisnes Negros, 2009