Reconstruções

"Mais uma manhã como outra qualquer, os olhos não escondem o sono, os dentes lavam-se da mesma forma e os espelhos, ah os espelhos, esses, não reflectem nada de jeito.

Mala ao ombro, tecnologias nos bolsos, livros escondidos, reconstrui-me, nas cervejas do Rimbaud e nos apontamentos de proximidade da Anaïs, como bons amigos, deitaram abaixo todas as memórias que tinha de mim e mostraram-me uma multiplicidade de eus, amo-os tanto como os odeio, pela ousadia das semelhanças, pelo desejo de impacto. Quem me dera ter um acidente agora.

Os caminhos são os mesmos, a maneira de andar, o percurso, as pessoas sem rosto, perdi-me algures ali, entre o anonimato dos transportes públicos e a relação que mantenho com o volante do meu carro. Já alguma vez sentiram os vossos dedos a deslizar, suavemente, com muita calma, por toda a superfície daquela tentação redonda? Todas as noites é a mesma coisa, a estrada como que desaparece e sinto uns calafrios bons, na distância das luzes desfocadas."

Nuno Almeida, Ecos de Gravidade, 2010