Mesa-de-cabeceira: Zdzisław Beksiński, Neil Gaiman/Yoshitaka Amano e Alexandra Lopes da Cunha

Zdzisław Beksiński - 1929–2005 (BoSz, 3ª edição 2016)

Os presentes de aniversário aqui por casa têm propensão para uma especificidade sui generis, como aconteceu em 2015 com o livro Memento Mori: The Dead Among Us, por exemplo. Em 2017, as honras couberam ao artista polaco Zdzisław Beksiński, um dos meus favoritos e fonte de inspiração inesgotável. Apesar de relativamente popular para quem aprecia obras de arte alternativas e tão belas como desconfortáveis, encontrar algum livro com os seus trabalhos ou sobre ele pode revelar-se uma demanda hercúlea ou demasiado dispendiosa.


Já na sua terceira edição, Zdzisław Beksiński 1929-2005 apresenta-nos uma retrospectiva sobre a carreira deste artista dividida por temas ao longo das suas quase 300 páginas em tamanho generoso. O texto bilingue (polaco/inglês) é interessante, extenso e uma boa introdução a cada um dos capítulos, mas é nas obras de Beksiński que reside o maior foco. E, nesse campo, este livro surpreende porque consegue apresentar vários trabalhos que desconhecia até então apesar da imensidão de imagens que existem espalhadas na Internet. Se antes tinha a noção de que Beksiński era um artista prolífico, após este livro senti-me inundado de incertezas quanto ao que conhecia da sua arte. Seguindo este raciocínio, fica o aviso de que não vão encontrar aqui tudo o que o artista produziu nem muitos dos seus trabalhos mais conhecidos (uma boa parte das suas pinturas a óleo realizadas entre os anos 60 e 80, denominadas de “Realismo Fantástico”) pois tal não seria exequível. A escolha recaiu na diversidade e na opção de incluir muitos trabalhos inéditos que percorrem os períodos de 1929 até 2005, altura da sua morte. A tarefa de organizar um livro como este revela-se ingrata porque cada um de nós poderia escolher trabalhos diferentes, logo o consenso seria impossível.


A qualidade das reproduções fotográficas de cada trabalho é muito boa, reproduções essa complementadas com informações sobre várias obras. É um livro belo, de capa dura (o design das capas é maravilhoso), que dá gosto folhear e a possibilidade de lermos o texto numa língua mais acessível (inglesa) acentua o prazeroso de toda a experiência. Podem encomendá-lo de duas formas: ou na página oficial da editora, que não se aconselha devido aos portes de envio elevados, ou numa das filiais da Amazon. Para Portugal, recomendo vivamente a espanhola. O livro chegou em poucos dias e a um preço razoável.

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Neil Gaiman & Yoshitaka Amano - The Dream Hunters (Vertigo/DC Comics, 1999)

"(...)"You would not seek to question a poem, or a falling leaf, or the mist on the mountaintop," said the raven. "Why, then, do you question me?"

“The house was like a maze, and the monk followed the raven through twilit galleries and pavilions, strange and austere; through passages formed of screens, beside calm ponds and perfect rocks and stones they walked, the monk always following the bird.

“From your reply,” said the monk, “I presume that you are a poet.” (...)”


(in The Dream Hunters, pp. 94,96)

Apremissa inicial por detrás desta obra foi a comemoração do décimo aniversário do universo Sandman, do escritor inglês Neil Gaiman, clássico que se insere no género literário da banda-desenhada. Contudo, o resultado final distancia-se de tal catalogação. Anunciada como adaptação de um conto de fadas japonês no posfácio deliberadamente enganador a cargo do autor (os títulos que compõem a bibliografia não existem, a história é original e não uma adaptação), The Dream Hunters oferece-nos uma fábula em que as duas personagens principais são um monge e uma raposa.


O ambiente é onírico, a escrita elegante, mas nada nos prepara para os deslumbres sensoriais que advêm dos vários desenhos e pinturas do artista japonês Yoshitaka Amano (Vampire Hunter D, Final Fantasy e muito mais) que ilustram o livro. As cores, pinceladas, as figuras, os traços tão característicos deste artista, as telas parecem ganhar vida, uma beleza propícia a obsessões. A junção das duas vertentes, narrativa e visual, transporta esta obra para um patamar elevado e de difícil classificação.


"(...) Ever since he could remember, since he was a tiny child, he had been afraid, and every thing he learned, every scrap of power he obtained, he had gathered in the hope that it would drive away the fear. But the fear remained. It waited behind him, and in the heart of him; it was there when he slept and there to greet him when he woke in the morning; it was there when he made love, and when he drank, and when he bathed.

It was not a fear of death, for in his heart he suspected that death might be an escape from the fear. And there were days when he wondered if, by his arts, he were to kill every man, woman and child in the world, that the fear would be gone, but he suspected that the fear would still haunt him even if he were alone.

It was fear that drove him, and fear that pushed him into the darkness. (...)"


(in The Dream Hunters, p. 40)


A história decorre entre o mundo real e o reino dos sonhos, em que as personagens tendem a pagar um preço elevado por aquilo que desejam, com o todo a ter tanto de surreal como de fantasia. Entidades fantásticas, mitologias, reis, animais que falam, a teia narrativa é labiríntica, enigmática, com um pendor existencial e filosófico, impregnada de simbolismos e com uma ideia de moral que se presta a várias interpretações. É uma obra ambígua, com uma atmosfera particular, que transcende géneros e que se destina a um público adulto.


Belíssimo, The Dream Hunters foi um dos primeiros livros que me fez olhar para universos associados à banda-desenhada de outra forma por ser tão alternativo em relação ao que existia na altura, levando-me posteriormente a descobrir outras obras de teor semelhante, em que uma escrita madura se aliava a uma componente visual diferente da norma. Se é verdade que a edição que obtive é a original, em inglês, saliento que existe uma em português publicada em 2014, no Brasil, pela Panini. Infelizmente, ambas são muito difíceis de encontrar actualmente e, quando tal acontece, o preço costuma ser algo exorbitante. Existe, também, uma versão mais convencional desta obra que se apresenta num formato de história aos quadradinhos e com arte a cargo do ilustrador P. Craig Russel, editada para comemorar o vigésimo aniversário da série Sandman.

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Alexandra Lopes da Cunha - Bífida E Outros Poemas (Kazuá, 2016)

"Acordei hoje e seguia ontem.
Ou antes ainda, tempo pretérito.
Os olhos de míope pesavam no rosto.
Os pés de gazela, dois blocos de pedra.

O espelho, perverso, devolve a imagem
em anos futuros, de um rosto desfeito.
Esmurro o vidro, em cacos o rosto,
sorrio em cortes, lamento em versos.

Café preto, fumegante,
pão salgado sem fermento,
desjejum sem doce ou gosto,
exercito língua e dentes.

A dança contínua das horas
arranca de mim os pedaços
Eu valso sozinha em soluços,
o corpo desfeito em trapos."


(in Véspera, Bífida E Outros Poemas, p. 125)

Não será coincidência que este terceiro livro de que falo aqui paute, também, por uma ligação muito forte entre texto e imagem. Todos eles favorecem a ideia de que um livro pode funcionar a vários níveis como objecto lúdico sem a necessidade de existirem concessões na qualidade do conteúdo. Familiar? Certamente, já que esse princípio extravasa em alguns dos textos que partilhei aqui relacionados com a edição de Histórias em Cellophane e Moléculas.

Bífida E Outros Poemas é o primeiro livro de poesia da escritora brasileira Alexandra Lopes da Cunha, que sucede a dois de contos que publicou anteriormente, Amor e outros desastres (2013) e Vermelho-Goiaba (2014), e antecedendo o romance Demorei a Gostar da Elis (2017). Aos poemas junta-se a fotografia expressiva, poética, a preto e branco de Raul Krebs, que acrescenta mais camadas de profundidade à obra, com muitas das imagens a dialogarem com os textos ou a criarem novas possibilidades de leitura. A poesia da autora é intensa, lúcida e sensível, numa relação de proximidade com a experiência de viver, de existir na pele, das manifestações de desalento e alegria, dos desejos da carne e das bifurcações do sentir. Os versos falam de si e para nós, um espelho que pode reflectir o mundo no olhar de quem os escreve e de quem os lê.

"(...) Pulei a fogueira três vezes
e as chamas beijaram
os meus pés descalços.
Vesti-me de nua indecência
decotes e fendas,
rubras transparências.
Desfeita a trança apertada,
agora os cabelos em volta do rosto.
Os olhos ornados em negro,
piscavam lascívia, pediam tormentas.

Nos lábios, o batom vermelho
sorria promessas de noites em festa.
No peito, rugia a vontade
de viver debalde e morrer depressa.

Deixei na soleira da porta
os trastes inúteis,
correntes e trancas
que me atavam o corpo
à vida insípida
de mulher honesta. (...)"


(in Não mais, Bífida E Outros Poemas, pp. 89-90)

Os poemas, com excepção do que encerra o livro, seguem a ordem alfabética do título de cada um, decisão que não invalida que perpasse claramente uma noção de conjunto ao lermos a obra do início ao fim. A voz da autora está sempre presente e o cuidado da edição transparece em vários pormenores. A título de curiosidade, nas badanas do livro figura um texto da autoria de Gonçalo M. Tavares sobre esta obra e, antes dos poemas, podem contar também com três textos introdutórios: da autora sobre o seu percurso, de Zico Farina sobre Raul Krebs e, por fim, um texto de Gabriela Silva sobre a arte poética e a autora. Para adquirirem o livro, podem tentar fazê-lo através da editora.