Budapeste: O cemitério Rákoskeresztúr


Uma hora de viagem, três transportes, a paisagem muda bruscamente à medida que chego às periferias de Budapeste, no distrito X. Nem parece que estou ainda na mesma cidade. Entre paisagens rurais e visões industriais que me recordam, a espaços, o Barreiro, não parece fácil encontrar o meu destino e a música nos ouvidos só me isola ainda mais. A comunicação é quase impossível nesta zona, ninguém fala inglês, eu pouco falo ou percebo de húngaro, os gestos não chegam. Percorro trilhos a pé com fábricas ao meu lado, mas até isso desaparece e deixo de perceber onde posso meter os pés. A estrada, onde passam demasiados carros por curvas que dificultam avistá-los a uma distância segura, não é opção. Persisto.

Mausoléus com ornamentos e arquitectura de Arte Nova, campas com estátuas de carros, corações desenhados com pedras a pulsar em silêncio numa laje perdida.
Os caminhos ferroviários abandonados, a força crescente da natureza, com ervas daninhas e árvores na linha da frente, as oficinas à beira da estrada que exibem diversos trabalhos funerários desde lápides a esculturas. Os primeiros sinais de que poderemos estar na rota correcta. A missão pode ser ainda mais dificultada quando se constata que o único cemitério (temető) que a população local parece conhecer nesta área é o denominado Novo Cemitério Público, de características cristãs e com uma entrada imponente, localizado um pouco depois do nosso destino, o qual consegue passar despercebido com um dos portões parcialmente tapado e os muros cobertos por árvores.



Mausoléus com ornamentos e arquitectura de Arte Nova, campas com estátuas de carros, corações desenhados com pedras a pulsar em silêncio numa laje perdida. O cemitério Rákoskeresztúr, também conhecido como o cemitério judeu da rua Kozma, prima por uma atmosfera que pode ser perturbadora e desoladora a início, mas percorrer muitos dos seus longos caminhos sem fim, de preferência sozinhos e com tempo para nós, abre possibilidades para momentos bonitos e descobertas inesperadas.


Fundado em 1891 pela comunidade judaica Neóloga, o Rákoskeresztúr não é um cemitério judeu tradicional, o que o leva a não ser apreciado ou usado pelos judeus Ortodoxos por exemplo, praticantes de uma vertente mais rígida e tradicional do Judaísmo. Muitos dos monumentos apresentam características modernas e algumas campas exibem elementos que se associam normalmente a outro tipo de cemitérios, como é o caso de estátuas de pessoas. Outra curiosidade pouco tradicional, é que neste local os homens não são obrigados a usar um chapéu na cabeça, apesar de ser recomendado em sinal de respeito pela Cultura Judaica. No meu caso, a já habitual boina e um bom dia em húngaro facilitaram a comunicação.


O Rákoskeresztúr é o maior cemitério judeu existente em Budapeste e onde muitos húngaros famosos estão enterrados, desde desportistas olímpicos (incluindo a primeira medalha de ouro de sempre para a Hungria), arquitectos, jornalistas, pintores, escritores, professores, cantores de ópera, actores…, estimando-se que seja o local de repouso para mais de 300.000 pessoas.


Percorrer alguns dos vastos caminhos significa lutar com sonhos e segredos impossíveis de serem descobertos devido ao avanço da natureza. Com esforço descortinamos um livro de pedra no meio de arbustos, noutros casos as papoilas decidiram tomar as rédeas e formar um manto que tinha tanto de transcendente como de bizarro, em que os tons alaranjados dançavam com o verde das ervas e com o cinzento e negro dos túmulos. É uma imagem que fica na cabeça, um poema visual lúgubre.


Tendo em conta o tamanho do cemitério e o número de campas, não é de estranhar o estado degradado de várias partes do cemitério e de diversos monumentos, já para não falar que várias campas foram abertas, vandalizadas e roubadas ao longo dos anos. Em alguns casos, como nos magníficos mausoléus de Arte Nova, concebidos entre 1900 e 1920 pelos mesmos arquitectos judeus responsáveis por alguns dos edifícios de Arte Nova mais importantes de Budapeste, os belíssimos ornamentos e mosaicos em mármore pediam um restauro urgente, mas isso afigura-se difícil e dispendioso. Uma excepção à regra, a maravilhosa cripta Schmidl, de tons esverdeados e restaurada no início do século XXI, uma obra-prima de Arte Nova tanto no exterior como no interior e o mais famoso mausoléu presente neste cemitério.


A desolação, por estranho que pareça, é um dos charmes deste retiro espiritual. Há algo de fantasmagórico nos longos caminhos, nas florestas que se formaram com o tempo e que escondem os nomes das campas de forma quase permanente, tudo parece uma anomalia espácio-temporal, nós incluídos, e já nem estranhamos quando nos aparece alguém a andar de bicicleta no meio do nosso estado de sublime absorção.


Se ainda existissem dúvidas, visitar este cemitério é uma experiência profundamente diferente do Kerepesi ou do Farkasréti, apesar de ser um seguimento lógico na maneira como cada um pede para ser abordado e explorado. No Rákoskeresztúr encontrar muito do que podem observar nestas fotografias é uma questão de sorte e vontade de ir ao encontro do desconhecido, de ouvir o respirar das folhas, de sentir as pequenas gotas de suor a descer pelo nosso corpo enquanto andamos ou ficamos parados a olhar para o que mais ninguém vê. Não existem aqui obras de arte umas atrás das outras, ou monumentos ou mausoléus em todo o lado, ou caminhos abandonados e paisagens arrepiantes ao virar de todas as esquinas, não, o constante são as pessoas que já não estão entre nós e que nos interrogam a alma. Algumas impõem-nos outro tipo de questões, daquelas que nos apertam o peito.



Até que ponto o ser humano pode ser cruel? Qual o limite? E como é que continuamos a querer repetir os mesmos erros do passado?


Estima-se que cerca de 75% da população judaica húngara foi morta na Segunda Guerra Mundial pelo exército Nazi e pela milícia húngara que dava pelo nome de Arrow Cross em menos de dois anos, durante o período de 1944-1945. No Rákoskeresztúr existe um monumento dedicado aos mártires húngaros do Holocausto, em que vários nomes foram sendo acrescentados posteriormente, à mão, por amigos e familiares de vítimas. Nesta zona, repousam também as duas mil vítimas do gueto criado pelos alemães e polícia húngara nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial e cujo centro se situava na praça Klauzál, a maior do bairro judeu (distrito VII).


Noutra área do cemitério, existe igualmente um memorial para os 10.000 soldados húngaros que morreram na Primeira Guerra Mundial, assim como um monumento militar para os soldados voluntários que morreram na revolução de 1849. Novamente, a história de um país contada por quem já não comunica por palavras.


Arrepios, introspecção, o cemitério judeu de Rákoskeresztúr é um local para pensar e sentir, para nos tornarmos invisíveis. No edifício central decorre uma cerimónia fúnebre, a despedida final ocorre pouco depois, com a forma corpórea em cima de um carrinho preto que é empurrado sem pressa. Nó na garganta, empatias, máquina fotográfica desligada, o registo é feito sem recurso a artifícios tecnológicos perante a inevitabilidade de todos partirmos um dia. Toda a fragilidade de se ser contida num instante.