Daniel


Daniel tinha seis anos quando descobriu a fala. Nesse momento disse que queria matar gatos. Dizia que se eles se deixassem apanhar não eram merecedores da sua compaixão.

Olhos inquietos, perscrutava a garagem da casa dos pais à procura de armas. A bicicleta escondida a um canto não era suficiente, não tinha acção, não tinha reacção, o conceito de morte pelas próprias mãos era ainda muito abstracto. Lavava-se quatro vezes dos pés à cabeça antes de sair de casa, menos tornava impossível o andar, mais dizia que dava demasiado nas vistas.

Houve quem dissesse que nele vivia o tirano, uma força maior que engole planetas num acto único de contrição e sucção. As pestanas carregadas, as rugas que lhe apareceram em tenra idade, Daniel já tinha visto a vida ainda ela não existia. O primeiro cigarro no ventre materno, a primeira vez com a vizinha do segundo andar, coleccionava cabelos e pêlos púbicos.

A epiderme sempre lhe despertou um fascínio maior, gostava de beliscar as raparigas com a mão esquerda para ficar com a pele delas debaixo das unhas. Estas eram cortadas horas depois, meticulosamente, com uma tesoura, e embebidas num líquido próprio no interior de um frasco que guardava no compartimento da sua mesinha de cabeceira.

Todos os Domingos de manhã ia à missa, hábito que herdou dos pais. Sempre se imaginou a realizar sacrifícios no altar da igreja desde muito novo e a confessar os seus pecados a um padre sem água benta suficiente para o absolver. Achava irónico todo o ambiente e gostava de brincar com as possibilidades, com a matemática dos prazeres obscuros. Para um rapaz que sempre primou pela insatisfação e hiper-actividade, havia qualquer coisa de catártico nesta rotina auto-imposta semana após semana.

Quando o descobriram sem vida no apartamento de duas assoalhadas, Daniel tinha 34 anos de idade. O corpo apresentava uma tonalidade azulada e na autópsia verificaram que não continha uma única gota de sangue dentro dele. Não existiam marcas exteriores visíveis de agressões ou de picadas, só um símbolo no peito desenhado pela ausência de pêlos na zona. Um π.

Nuno Almeida
Contos do Tirano
2011

Daniel

Guardar [MP3, ZIP] Duração [76:20] Data: 13-07-2011

Playlist:
01. Natalie Beridze/TBA - Silently
02. Illogical Time Concerns - Unit 1
03. Screen Vinyl Image - Synthetic Apparition
04. Aimon - Maasym
05. Stendeck - Tired Figures Wave Goodbye In The Backdrop Of A Sinking Boat
06. Download - Stone Grey Soil
07. EliteGymnastics - o m a m o r i 2
08. Calisota - Hearts of the Yukon
09. Blue Dressed Man - Cable Two
10. Blonde Redhead - Love or Prison (Kastellet remix)
11. Parenthetical Girls - Careful Who You Dance With (Xiu Xiu Remix)
12. The Soft Moon - Circles
13. Film School - Sick Hipster Nursed by Suicide Girl
14. Queen Adreena - Are The Songs My Disease?
15. Julian Fane - The Moon Is Gone
16. Portishead - Machine Gun
17. Collide - Razor Sharp
18. Massive Attack - Bullet Boy