O Rumo

"Pouco faltava para serem duas da manhã, liguei a cabeça e lá estava ela novamente, aquela imagem das cabines telefónicas de que sinto falta, de quando chovia torrencialmente e encontrava aí muitos dos meus refúgios para me abrigar da melancolia do cinzentismo dos dias.

Sinto que as cidades estão desertas sem elas, sem aquela voz que nos pedia para marcar o número pretendido e, com um tom quente, murmurava o saldo disponível após deixar deslizar as moedas por aquela ranhura que tratava como amiga. Muitas distâncias foram encurtadas assim, várias, as vezes que dizíamos a outra pessoa loucuras e sonhos. “vamos fugir, sair daqui, para qualquer lado, não interessa onde”, “o que tens vestido?”, “deixa-me ouvir-te apenas”, “hoje arranhei-me nas pernas, pensei em ti”, “o saldo disponível não lhe permite continuar esta chamada, por favor insira mais moedas”.

Outras vezes, ficava apenas a olhar para a lista telefónica encostada ali a um canto, folheava as páginas para passar o tempo, para que os pensamentos flutuassem até onde queria, os anúncios de empresas com os nomes mais estranhos, os anúncios que pousavam anónimos nas paredes, cheguei até a sentar-me no chão, rabiscar umas frases incompreensíveis e ligar para um número alheio só para as partilhar com alguém depois. Precisava de um rumo.

Noutras noites, porque só aí, quando os candeeiros começavam a iluminar as ruas é que os amigos aparecem, deixava-me estar a subir e a descer num elevador de um prédio, não interessava qual, desde que tivesse um, cheguei a perguntar a várias pessoas isso mesmo, se o local onde viviam tinha elevador. Acho-os muito próximos, eles e as cabines, elas e quem levava para dormir comigo ocasionalmente, quando as histórias das moedas não corriam da melhor maneira. Sempre tive sorte nesse detalhe, mesmo que alguns se assustassem, ou ficassem simplesmente a olhar para mim feitos parvos, quando lhes pedia para fazerem de mim a sua ranhura. Não os censuro, também acharia estranho.

Tenho este tique desde aí, enrolar os meus longos cabelos nos dedos, uma cor diferente de três em três meses. Preto, castanho, ruivo, com madeixas, sem, não interessa, já o cortei por impulso também inúmeras vezes e já o deixei espalhado por mais lados dos que gostaria de me lembrar, por aquelas rodelas de tamanhos variáveis preenchidas com números que sinto saudades de rodar de uma maneira nervosa, de ouvir aquele som específico de cada vez que um número era aceite. Preciso de um rumo."

Nuno Almeida
Histórias de raparigas com casacos de cabedal e braços cobertos com pulseiras
2010